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Quinta-feira, Outubro 3, 2024

As privatizações da geração Passos Coelho

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Talvez seja conveniente recordar que se pode dizer que as privatizações em sentido amplo tiveram início em Portugal alguns anos antes do início do ciclo governativo de Cavaco Silva, na medida em que as nacionalizações decididas entre 1974 e 1976 tiveram uma lógica de nacionalização de sectores materializada do ponto de vista instrumental com a nacionalização da totalidade ou de parte do capital social das empresas abrangidas (deixando de fora as partes detidas por estrangeiros) e que muito cedo com a lei de delimitação de sectores, se tentou criar uma dinâmica de surgimento de novos operadores, como sucedeu com a autorização de bancos privados, ou de concorrência dentro do sector público empresarial, como sucedeu com a integração das empresas só parcialmente privadas na órbita do IPE e não da das grandes empresas públicas sectoriais entretanto construídas por fusão das empresas cujo capital fora integralmente nacionalizado.

O governo minoritário do PSD – 30 % dos votos – de Cavaco Silva constituído em 1985(i) não tinha margem para alterar substancialmente a situação, na medida até em que a Constituição considerava as nacionalizações irreversíveis, mas o derrube do Governo em 1987 através de uma moção de censura proposta pelo PRD – Partido Renovador Democrático e a dissolução do parlamento decidida por Mário Soares vieram a permitir a constituição de uma maioria absoluta e de novo Governo Cavaco Silva(ii).

No ano seguinte foram dados passos decisivos para as privatizações, entre as quais a aprovação da Lei nº 71/88, de 24 de Maio, cujo assunto era o “regime de alienação das participações do sector público” e a da Lei nº 84/88, de 20 de Julho, que eufemisticamente tinha no assunto “transformação das empresas públicas em sociedades anónimas” e sob a aparência restritiva consagrava uma flexibilização:

Na transformação de uma empresa pública em sociedade anónima deve ser imperativamente salvaguardado que:

  1. a) A transformação não implique a reprivatização do capital nacionalizado, salvo nos casos previstos no artigo 83.º, n.º 2, da Constituição, devendo os títulos representativos do capital assumido pelo Estado à data da respectiva nacionalização ser sempre detidos pela parte pública;
  2. b) A maioria absoluta do capital social seja sempre detida pela parte pública;
  3. c) A representação da parte pública nos órgãos sociais seja sempre maioritária.

Nesta altura o PSD viria a obter o acordo do PS, liderado por Vítor Constâncio, para uma revisão constitucional, aprovada e publicada em 1989, que viria a pôr termo à irreversibilidade das privatizações. No ano seguinte seria aprovada a Lei nº 11/90, de 11 de Abril (Lei Quadro das Privatizações) que iria facilitar as privatizações do segundo e do terceiro governos de Cavaco Silva(iii).

Vivia-se ainda o momento criado pela aprovação da legislação de 1988 quando António Sampaio Mello, na altura identificado com a menção “Cambridge, Massachussets” que colabora ainda hoje com instituições norte-americanas e Diogo de Lucena, engenheiro de formação com doutoramento nos Estados Unidos, já na altura professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa, onde atingiu a cátedra, tomaram sobre si a organização e publicação através da editorial Verbo já em Março de 1990, de um “livro de textos” com o título Política Económica para as Privatizações em Portugal que reúne contribuições de vários académicos e gestores, tanto nacionais e estrangeiros, sendo que alguns incluem a indicação de que foram elaborados em 1988 ou 1989 e até de contributos de colaboradores mas que num ou noutro caso estão desprovidos de referências(iv).

O prefácio subscrito por ambos os coordenadores começa por atribuir apenas a motivos ideológicos “as expropriações maciças que marcaram a via portuguesa de 70” e “os planos que levaram às nacionalizações do pós-guerra na Grã Bretanha e mais recentemente em França”. Não subscrevo essa visão e tive de proceder a uma análise mais rigorosa para preparar nessa parte a lecionação da disciplina de Gestão do Sector Público a finalistas de um curso superior de gestão. De resto os prefaciadores reconhecem noutros países e momentos a existência de outras motivações e acabam por aceitar que tanto pode haver falhas de mercado como falhas de Estado e chamar a atenção para que as privatizações podem ter o objectivo de fomentar a concorrência e para que a organização do processo de privatização deve favorecer a concorrência. Na colectânea de textos são particularmente relevantes a esse respeito “Privatizações e eficiência”, de Diogo de Lucena, “Política de regulação da concorrência no período pós-privatização”, de Aníbal Santos, e “As privatizações no Reino Unido”, de Mathew Bishop e John Kay. Sobre falhas de mercado a colectânea insere um interessante ensaio de John E. Parsons “O enigma da sociedade anónima da responsabilidade limitada”.

Fomos tendo privatizações no ciclo de Cavaco Silva, no ciclo de António Guterres (com Teixeira dos Santos), no ciclo de Durão Barroso, no ciclo de José Sócrates (de novo com Teixeira dos Santos) e com Passos Coelho, aqui com o espírito de ir para além da Troika.

Sérgio Monteiro

Foi justamente nas privatizações de Passos Coelho que se verificam casos descontrolados que, independentemente da receita gerada, criaram distorções graves em termos de concorrência e eficiência de funcionamento por muito que o antigo Secretário de Estado Sérgio Monteiro tente apresentá-los como casos de sucesso que contribuíram para a “saída limpa” do programa de assistência.

O primeiro caso é o dos CTT que já tratei em artigo publicado aqui no Jornal Tornado em 17 de Janeiro de 2024: “Os CTT e a maldição do imobiliário”. Seduzido por uma moda de “privatizações” de correios que começou a surgir em outros países, o executivo português resolveu promover a venda do capital de uma sociedade que durante muito tempo – até 1969 tinha sido uma empresa sem personalidade jurídica e só mais farte fora convertida de empresa pública em sociedade de capitais públicos. A legislação que regulava a actividade foi alterada estava o processo de privatização já lançado, e depois de um primeiro momento, ter sido privatizado integralmente o capital, percebeu-se que por muito deficiente que fosse o cumprimento das obrigações de serviço universal, a circunstância de o estabelecimento afecto à concessão depender do imobiliário da empresa inviabilizará qualquer novo concurso para concessão. Costa, Pedro Nuno Santos e Souto Miranda sempre escamotearam esta condicionante, ou nem sequer tiveram plena consciência dela, e com o actual Governo a definição dos indicadores de cumprimento das obrigações de serviço universal deixou de ser feita pela ANACOM e passou a ser feita por portaria. O Estado ficou, continua e continuará, nas mãos do concessionário.

CTT

Estão ainda em discussão muito por força de uma auditoria do Tribunal de Contas ainda, ao que parece, em fase de audiência prévia, a forma como decorreu o processo digamos de privatização da ANA – Aeroportos e Navegação Aérea, entidade empresarial que reuniu infraestruturas criadas por investimento da Administração Pública e que sempre estiveram sob a administração desta. Por muito importante que possa ser a questão do encaixe o problema fundamental que se gerou foi o processo de decisão relativo aos novos investimentos, que fui abordando em diversos artigos, designadamente no de 22 de Junho de 2022 As decisões sobre investimentos públicos e o fantasma do novo Aeroporto de Lisboa. A Comissão Técnica Independente andou bem, no seu Relatório, em identificar os problemas que poderão afectar a negociação do Novo Aeroporto de Lisboa com a concessionária, e tenho muitas dúvidas que a opção Alcochete, embora consensualizada a nível político, avance sem entraves. Também aqui a dupla António Costa – Pedro Marques, invocando compromissos contratuais mal definidos, jogaram tudo na não hostilização da ANA e do PSD, que supunham alinhada com a primeira(v), e mobilizaram os aparelhos concelhios socialistas para a alternativa Montijo. Mau negócio para todos.

Por Sharon Hahn Darlin – Aeroporto Humberto Delgado (Portela Airport / Aeroporto de Lisboa), Lisbon, Portugal, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=108149669

Finalmente, a TAP, criada a partir da Administração Pública e nacionalizada em 1975 pouco depois de convertida em sociedade anónima predominante pública . Foi-se criando a ideia de que a TAP era mal gerida, e um sorvedouro de “dinheiro dos contribuintes”. Ora, antes da pandemia, a última intervenção de apoio terá sido um saneamento financeiro, aliás um saneamento contabilístico, em que edifícios do aeroporto da Portela foram por decreto-lei transferidos do domínio público para o domínio privado e entregues à TAP como forma de subscrição de aumento de capital por parte do Estado. Quanto à gestão descobriram um brasileiro, Fernando Pinto, que trouxe consigo uma equipa que lhe permitiu ter assegurado a presidência operacional da TAP durante – li outro dia – 16 anos(vi). Criou novos horizontes nas ligações com o Brasil, mas quem diz Brasil diz VEM, etc.

Por Tokota – Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=57917934

Não me recordo já das circunstâncias em que em 2015 se quis avançar, estávamos nós em modo saída limpa, a todo o vapor com a privatização da TAP, tendo aparecido um candidato não-idóneo. A seguir Fernando Pinto veio prestar um último serviço a Portugal, suscitando um comprador – David Neeleman – um mórmon americano radicado no Brasil, onde operava a Azul que se apresentou integrado numa parceria com o português Humberto Pedrosa que operava outros tipos de transportes e que por razões de cosmética europeia, ao que parece, ficou maioritário na parceria. Mesmo afastado posteriormente da presidência executiva Fernando Pinto ficou com uma avença muito lucrativa. Em suma, todos julgaram ganhar, Neeleman modernizou a frota da TAP em circunstâncias que recentemente começaram a ser melhor escrutinadas e caiu quando a COVID 19 veio praticamente paralisar as ligações aéreas de passageiros.

António Costa depois de recuperar a TAP e justificar amplamente o interesse da recuperação para o país, quis privatiza-la sem definir exactamente como. Aparentemente queria vender a TAP ficando com o hub…. Recentemente Montenegro pareceu acalentar a mesma visão. Talvez a leitura de Política económica para as privatizações em Portugal lhes fizesse bem e os alertasse para que as empresas continuam a existir após a sua privatização.

 

Notas

(i) Curiosamente um livro de memórias (?) publicado por um ex-governante socialista fala de Governo da Aliança Democrática.

(ii) Vale a pena recordar que a moção de censura não foi proposta por nenhuma questão relacionada com o Orçamento do Estado cuja proposta tinha sido aprovada com alterações pela Assembleia, apesar de o Governo insistir em que tal prejudicava a sua acção, mas porque se iria realizar uma visita parlamentar à União Soviética liderada pelo Presidente da Assembleia (Fernando Amaral, do PSD) que o Governo resolveu desaconselhar por abranger a Estónia, tendo o PRD considerado esta interferência desrespeitosa.

(iii) Alterada pela Lei nº 102/2003, de 15 de Novembro, no ciclo de Durão Barroso, e pela Lei nº 50/2011, de 13 de Novembro, já com Passos Coelho.

(iv) A responsabilidade pela tradução (cuidada) dos textos de autores estrangeiros não é assumida.

José Luis Arnaut / PSD

(v) Dada a transferência de José Luís Arnault para a presidência da concessionária.

(vi) Um santimonioso comentador havia de escrever há dias que, para gestão, era um tempo excessivo face àquilo que os manuais recomendam.

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