Em Portugal, foi o Serviço Nacional de Saúde (SNS) que se constituiu como estrutura pública determinante para a implementação efetiva e o desenvolvimento das carreiras profissionais médicas e, por consequência, da evolução da profissão médica em si mesma. Não poderá permitir-se que o idealismo romântico, pese embora a força simbólica de João Semana, contribua como pretexto para uma aceitação martirificada do regresso à ‘crueza’ de exercícios profissionais desamparados como relatados por Torga e Namora.
Resposta ao Secretário de Estado Adjunto e da Saúde
No dia mundial da saúde, 7 de Abril, foi publicado um artigo de opinião do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, sobre “A pandemia e identidade dos profissionais de saúde”. Embora pareça ter sido intenção do autor agraciar o trabalho e a dedicação dos profissionais de saúde estranha-se, sobretudo sendo o autor um dirigente político, que este limite o reconhecimento da ‘profissionalidade’ às matérias da “alma”, sem atender às necessidades concretas das profissões que, segundo diz, se alicerçam “na entrega pessoal”.
Não desmerecendo da bondade da intenção admira a naiveté que o autor promove quando confunde profissional enquanto trabalhador (especializado) e profissão enquanto organização do trabalho (especializado). Em matérias profissionais tomar a parte pelo todo ou isolar o indivíduo da organização social que lhe subjaz para exaltar um carácter identitário ou ethos (como designa) que se apresenta reduzido a uma conduta moral exercida pelos indivíduos, constitui uma preocupante expressão de retrocesso nas conquistas de profissionalização em saúde.
Provavelmente, tratando-se de profissões de saúde, a maior parte das pessoas tenderá a simpatizar que o autor enalteça a “alma da profissão” e a “vocação”. Na verdade, é próprio de um profissional de saúde apresentar atenção às necessidades de outrem; atuar com profundo respeito pela autonomia, privacidade e, até, as idiossincrasias do outro; compreender as circunstâncias da vida, desejos, vontades, expectativas, sentimentos, incapacidades e limitações de outrem. É esperado que um profissional de saúde aja em conformidade para atender aos cuidados necessários e atempados – sem preconceito, sem constrangimento, sem crítica moral – alicerçando-se numa relação profissional cuja base é tanto a da confiança técnico-científica como a da capacidade de bidireccionalidade relacional própria de quem é capaz de empatia.
Todavia, coisa diferente é pretender caracterizar as profissões de saúde como se do exercício de um imperativo moral ou de fé se tratassem. Promover a indistinção entre “alma da profissão”; “vocação”; “sacerdócio”; “chamamento”; “missão superior do espírito” ou “caridade compassiva” é o que o autor admite fazer quando se sente compelido a justificar que “não se questiona obviamente a necessidade de assegurar os direitos laborais e as gratificações devidas”. Curiosamente, até o recurso ao termo “gratificação”, ao invés do de honorário característico de profissões liberais, ou de salário, próprio de relações de trabalho dependente, parece simbolicamente revelador…
Para reconhecer a dignidade das profissões de saúde, importará lembrar que a construção de uma profissão constitui um processo sociológico de organização e de afirmação de uma área de saber e labor específicos. A definição de uma profissão é inextrincável das esferas da organização do trabalho e da sapiência, da constituição de um grupo de pares baseado em conhecimentos teórico-científicos especializados, com competências técnicas próprias e atribuições particulares, assim como da existência de um quadro normativo de conduta que assegure a orientação social do exercício laboral. Uma profissão é, assim, uma ocupação laboral concreta, socialmente reconhecida e valorizada, dotada de autonomia de organização e de exercício, com escrutínio inter-pares e não uma mera “identidade de alma” por mais generosa e cândida que seja a sua caracterização.
Por consequência, as profissões, apesar de apresentarem uma componente de aceitação inter-pares que obriga a uma deontologia comum, constituem atividades laborais nas quais o indivíduo é, acima de tudo, um trabalhador cuja individualidade identitária não pode ser confundida com a natureza deontológica da sua ‘profissionalidade’ à qual adere pela via social do labor e desenvolve em contexto de trabalho através de práticas estruturadas e continuas.
Considerando-se que é através da materialidade concreta dos exercícios profissionais que as profissões se constroem, distinguem, diferenciam e evoluem enquanto atividade laboral socialmente valorizada, ter-se-á que reconhecer que idealismos romanescos sobre uma putativa “comunhão de almas” sugerem indícios de uma regressão sócio-histórica na afirmação das diversas e diferentes profissões de saúde suscetível de causar preocupação e, até, algum justificado alarme porquanto não atende às circunstâncias materiais da realidade objetiva do trabalho e dos seus contextos.
Quando Lacerda Sales oferece o ethos médico como paradigma para todas as profissões de saúde está, sem querer, a recusar a existência de outros ethos profissionais específicos. Mesmo quando se busca alguma justificação para tal ‘oferta’, recorrendo à noção genérica e ancestral de ars medicina (arte da cura), isso não se revela apropriado porquanto o desengano é revelado nas afirmações do autor: “a medicina sempre foi vista como uma profissão”, “o que está em causa é reforçar esta nobre profissão” e que “uma ‘tecnização’ da medicina (..) levou a uma desumanização da profissão”. Ainda que o equívoco possa resultar de uma incompreensão conceptual, com a indistinção entre a área de conhecimento técnico-científico que consubstancia os saberes da arte da “Medicina” e a sua tradução profissional específica (a profissão médica), resulta evidente que, talvez inadvertidamente, o autor promove o subsumir de todas as profissões de saúde na de profissão médica, comprometendo, desta forma, os ethos de todas as profissões de saúde, incluindo da médica, ao negar-lhes a individuação teórico-técnico-prática e a valorização social específicas de factum.
A ingenuidade das análises idealistas sobre as profissões (de saúde) tendem a esquecer a história dos processos de desenvolvimento sócio-profissional. No caso específico da profissão médica importa lembrar o combate travado pela Universidade de Coimbra quanto à exigência de certificação profissional quando os Físicos do Reino ainda licenciavam médicos ad hoc, cirurgiões-barbeiros, boticários, sangradores, etc. E, bem assim, o esforço que constituiu a aprovação da “Lei do Exercício da Medicina” (1942) que criminalizava o seu exercício ilegal[1]. Também importa evocar a luta pelas carreiras médicas, quando a profissão se encontrava desarticulada devido ao isolamento profissional e “a maioria dos médicos já não viv da clínica livre, viv do somatório de pequenos vencimentos, com dificuldade”[2]. Nos dias de hoje chamar-se-lhe-ia precaridade laboral…
Em Portugal, foi o Serviço Nacional de Saúde (SNS) que se constituiu como estrutura pública determinante para a implementação efetiva e o desenvolvimento das carreiras profissionais médicas e, por consequência, da evolução da profissão médica em si mesma. Não poderá permitir-se que o idealismo romântico, pese embora a força simbólica de João Semana, contribua como pretexto para uma aceitação martirificada do regresso à ‘crueza’ de exercícios profissionais desamparados como relatados por Torga e Namora.
Ao invés, importa realçar e valorizar a continuidade da luta pelo reconhecimento e desenvolvimento das diversas profissões de saúde, incluindo a da profissão médica. Não será com meros afagos às “almas” dos profissionais de saúde que se levará “a profiss[ões] para lá dos patamares da mera prestação ou venda de serviços, de um formalismo contratualista, que esvazia os cuidados de saúde da sua alma”. Sobretudo não se permita que seja por implícita acusação de apostasia que se insinue a desnecessidade do “vil metal” ou a prescindibilidade de condições de trabalho com direitos laborais apropriados às funções desempenhadas menorizando, com isso, as lutas laborais, tanto para as profissões em construção, como para aquelas que têm sofrido um processo de precarização.
Quando o autor identifica o atual momento histórico como “julgamento purificador oportunidade de desenvolvimento num determinado sentido”, esperar-se-ia encontrar algures no texto a proposta de uma ação política concreta que visasse reforçar as profissões de saúde com mais do que ideais vagos sobre “compromisso, empenho em meios eficazes de humanização, espírito de serviço, profundos valores morais e apurados critérios éticos”. De alguém com responsabilidades nas políticas de saúde esperar-se-ia, pelo menos, a intenção de tornar o SNS numa entidade pública referencial para o exercício laboral das diversas profissões de saúde começando, desde logo, pela instituição no serviço público de carreiras especiais que respeitem a multiprofissionalidade que a saúde exige.
Permita-me o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, colega, que parafraseie Pedro Laín Entralgo, através da transformação da noção de “amizade médica” na de “amizade política”, para veicular doze propostas que “almas de profissionais de saúde” têm apresentado para melhorar, na realidade concreta, o exercício profissional das profissões de saúde:
- Assegurar o valor das carreiras profissionais na área da saúde como reconhecimento interpares de diferenciação técnica, científica e de liderança, implementando-as e valorizando-as, de modo a que a dedicação ao SNS se torne uma opção profissional maioritária porque satisfatória e garantidora da conciliação entre a vida profissional e familiar.
- Dotar os estabelecimentos de saúde do SNS com o quadro de profissionais necessários à satisfação das necessidades de saúde da população, com recurso ao trabalho em funções públicas, em detrimento dos contratos individuais de trabalho e prestação de serviços (recibos-verdes).
- Realizar concursos de provimento e de mobilidade em associação com as carreiras profissionais de forma regular, em épocas fixas e céleres, de modo a que não fiquem desertos e as colocações sejam efetivas.
- Garantir que o planeamento da força de trabalho assegure a existência de médico e enfermeiro de família para todos os cidadãos na totalidade do território nacional, assim como uma adequada provisão pública de técnicos de diagnóstico e terapêutica; médicos dentistas; psicólogos; nutricionistas; fisioterapeutas, além de outros grupos profissionais indispensáveis para assegurar os cuidados de saúde necessários à população.
- Robustecimento do número de profissionais de Saúde Pública afetos às Unidades de Saúde Pública, entendidas como observatório local/regional de saúde e estrutura de vigilância e controlo epidemiológico.
- Estimular as entidades privadas de saúde a adotarem mecanismos de negociação coletiva com os profissionais de saúde, nomeadamente aquelas com as quais o SNS estabelece convenção ou protocolo de colaboração.
- Substituir a subcontratação de empresas de “mão de obra” por contratação de profissionais de saúde, em regime de vínculo de emprego público, de todos os profissionais necessários ao funcionamento dos serviços públicos de saúde, como reiteradamente previsto em sucessivos Orçamentos Gerais do Estado.
- Assegurar a participação e a gestão democrática das instituições e dos serviços de saúde para que os profissionais de saúde e demais atores participem na decisão sobre a melhor adequação de cuidados e respostas às necessidade de saúde.
- Assegurar que as entidades do SNS têm meios para prover formação pré e pós-graduada, numa ótica de formação contínua, assegurando que todas as profissões de saúde tenham possibilidade de formação em unidades do SNS, de modo a potenciar a qualidade da experiência profissional através da possibilidade de aprendizagem contínua, de investigação, de ensino e de partilha de conhecimentos.
- Reforçar o número de profissionais afetos à função de secretariado clínico de modo a libertar os profissionais de saúde do excesso de exigências administrativas.
- Harmonizar os sistemas de informação do SNS por forma a que exista efetiva integração e articulação de cuidados, através da simplificação de procedimentos burocrático-administrativos, para que as ações dos diversos profissionais de saúde estejam enquadradas num plano de cuidados individual centrado na saúde de quem precisa.
- Interromper o processo de transferência administrativa dos assistentes operacionais, que está a ocorrer através da delegação de competências na área da saúde para as autarquias locais, porquanto é necessário desenvolver e aprofundar a capacidade de trabalho em equipa entre diferentes grupos profissionais o que não se coaduna com níveis diferentes de pertença administrativa.
Perante as transformações da sociedade, mais que reptos para um “repensar autocrítico das profissões” de saúde, importará que a ação governativa lhes propicie o desenvolvimento e a valorização. Cabe ao Estado agir de modo a conter a crescente mercantilização dos cuidados de saúde e a consequente proletarização dos profissionais de saúde. Como recentemente defendeu o Professor António Costa e Silva: a salvação “não são os mercados, é o Estado, o SNS”.
[1] DL n.º32.171 de 27 Julho 1942, conhecido como Lei do Exercício da Medicina.
[2] Relatório das Carreiras Médicas, 1961.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.