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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

As revoluções francesas antes dos coletes amarelos

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

A França é um palco. O génio da França tem sido a mistificação. Mistificar: Abusar da credulidade de alguém para se divertir às suas custas, sinónimos: ludibriar, enganar, iludir, lograr, falsificar.

As grandes datas da França e os grandes acontecimentos da História de França são encenações. Belas encenações, aliás. A minha base cultural (se é que tenho alguma) é francesa. Frequentei a França desde muito novo e até lá vivi e trabalhei. É dos poucos destinos, juntamente com a Espanha e a Itália onde vou sempre que posso. A Inglaterra já me dispensei, embora não definitivamente, como fiz com os Estados Unidos e o Brasil.

Tudo o que parece excessivo e decisivo em França é excessivo, mas não é decisivo. O 14 de Julho é o dia nacional da França e celebra a tomada da fortaleza prisão da Bastilha. A França apresenta essa acção como um movimento popular que deu origem à revolução francesa, à tomada do poder do povo, à derrota da aristocracia!

Na realidade, a Bastilha, fortaleza medieval utilizada como prisão, tinha apenas 7 prisioneiros. Quem tomou o poder foi o Terceiro Estado, com seus representantes vindos da classe média, a bourgeoisie, uma espécie de coletes amarelos que se reorganizou sob a forma de uma Assembleia Nacional. Paris estava à beira da insurreição e, nas palavras de François Mignet, “intoxicada com liberdade e entusiasmo”. A imprensa publicava debates e o debate político desaguou nas praças públicas e salões da capital. “O Palais-Royal e os seus jardins tornaram-se palco de uma reunião interminável; e a multidão ali reunida, enfurecida, decidiu arrombar as prisões da Abbaye para soltar alguns granadeiros que teriam sido presos por se negarem a disparar contra o povo.” A grande prisão do Estado terminou sendo invadida porque um jornalista, Camille Desmoulins, até então desconhecido, fez um discurso em frente ao Palácio Real e pelas ruas dizendo que as tropas reais estavam prestes a desencadear uma repressão sangrenta sobre o povo de Paris. A multidão, num primeiro momento, dirigiu-se aos Inválidos, o antigo hospital onde concentravam um razoável arsenal. Correu o boato de que a pólvora se encontrava na fortaleza da Bastilha. Marcharam então para lá. A massa revoltosa era composta de soldados desmobilizados, guardas, marceneiros, sapateiros, diaristas, escultores, operários, negociantes de vinhos, chapeleiros, alfaiates e outros artesãos, o povo de Paris enfim.” Só não havia coletes amarelos!

“Os presos, soltos, arrastaram-se para fora da prisão sob o aplauso comovido da multidão postada nos arredores da fortaleza devassada. Posteriormente a massa incendiou e destruiu a Bastilha.” Resultado da revolta popular francesa: o Terror, e a ditadura imperial de Napoleão que em vez de uma Europa de povos, liberta das aristocracias de direito divino deu origem a uma Europa nacionalista, de matilhas de Estados agressivos que desembocou no colonialismo da Conferência de Berlim e na I Grande Guerra. Brilhante resultado da revolução popular à francesa, dos sans culottes que são os ancestrais dos coletes amarelos: a guilhotina, o nacionalismo, o colonialismo e a I Grande Guerra! Um orgulho para os amotinados antecessores dos coletes amarelos!

Nos meados do século xx a França ofereceu ao mundo nova prova de mal dos povos com a feira popular juvenil que ficou conhecida como Maio de 1968 (de que celebramos os 50 anos). O furúnculo do mal do antigo regime do pós II Guerra rebentou na Sorbonne e em Nanterre. Porreiro, pá, sobraram os slogans anarcas e turmas mistas nas escolas. As famílias reinantes da França continuaram a reinar, as mesmas, da cosmética aos pneus, da banca ao champanhe. Brigitte Bardot, o grande símbolo da mudança de costumes, é hoje uma senhora de virtudes, uma quase virgem num altar de Saint Tropez. A França continuou a ser uma sociedade conservadora em todos os sentidos, como desde o Abril de 1655 quando Luís XIV pronunciou a frase: « L’État, c’est moi » aos deputados parisienses. O primado do Estado é a constante da sociedade francesa. Os coletes amarelos franceses não querem nenhuma revolução, nem querem nenhuma evolução. Uma revolução popular que tem como motivo o preço dos combustíveis que fazem mover o mais icónico dos objectos de consumo individual, o pilar do capitalismo, o automóvel, não pode ser tomada a sério. Ou só pode ser levada a sério porque revela até que ponto as multidões podem ser manadas largadas como as de Pamplona que só podem ter como destino a praça onde está previsto que voltem a ser recolhidas depois de cumprirem o que os promotores do espectáculo lhes determinaram. As manifes dos coletes amarelos são os toiros de uma largada em Pamplona.

Os coletes amarelos franceses são como os Bourbons, em versão de banlieue et voiture Renault occasion, isso, em segunda mão. Os coletes amarelos provam o que Talleyrand disse dos aristocráticos Bourbons: n’ ont rien appris ni rien oublié. Ou como Fouché disse de Napoleão no seu regresso da ilha de Elba: “Cet homme est revenu plus fou qu’il n’était parti.”

Os coletes amarelos reproduzem os estudantes do Maio de 1968 e os ucranianos manipulados da praça de Maiden, ou os bolsonaristas das classes médias brasileiras, mas mais loucos. Trazendo uma reedição da história mais próxima da tragédia do que da farsa.

Numa reportagem sobre a motinaria dos Campos Elísios, uma senhora de meia-idade, de colete amarelo, toda bling bling, de olhos arregalados, de quem está égaré, completamente perdida, mas divertida como na saída de uma missa, respondia à pergunta do jornalista: O que querem? Ela queria que o “governo resolvesse todos os problemas dos franceses!” Nada menos do que isso. As burguesas do Rio de Janeiro e de São Paulo não queriam menos, contra Lula. Que os canhões de água lancem perfume Chanel!

É tipicamente francês: o francês e a francesa quer, exige, que o governo resolva os seus problemas e está disposto e disposta a andar de colete amarelo nos Campos Elísios para se iludir com essa possibilidade.

O resultado das revoluções francesas é conhecido. Se há quem pense que os coletes amarelos querem uma revolução, desengane-se. Eles são apenas a aquilo que os sans culottes foram na Bastilha: a malta que anda nas barricadas para que novos senhores se sentem no lugar dos velhos… Para que da Bastilha se passa à guilhotina, para que do Liberation do Maio de 68 e de Sartre se evolua para o Liberation dos Rothschild.

Atrás destes sans culotes há sempre um cardeal filho da puta, um Robespierre que sobrevive, uma derrota como Waterloo e o regresso dos velhos senhores como Bourbons.

Em verdade vos digo que enquanto os alemães pagarem a política agrícola e a Airbus dos franceses, deixarem que a Alstom francesa ganhe alguns concursos para o TGV à Siemens, não há problemas graves a não ser para os negócios do turismo, para os bateaux mouches do Sena, os espectáculos de cabaré do Lido, do Moulin Rouge ou do Casino, para as marcas de luxo que vendem caro aos bandos de asiáticos o que os asiáticos fabricam a baixo custo.

Quanto à actualidade, nem Macron é Luís XVI, nem os coletes amarelos são tropas napoleónicas… mas a França continua a ser uma peça importante na Europa e é aí que as grandes batalhas se travam… É aí que se encontram os manipuladores que distribuem coletes amarelos…

A parte séria da largada dos coletes amarelos nas avenidas de Paris é saber que os lançou e contra quem…

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