O assunto foi trazido recentemente ao espaço público pelo jornal “Público” (06.01.17). Em que termos? Nos termos da defesa do direito à “desconexão” – do direito a desligar as plataformas tecnológicas que ligam o trabalhador ao seu ambiente de trabalho quando estão fora do horário laboral.
Tempo de trabalho e tempo de vida
Parece uma redundância – visto que o tempo de trabalho está regulado -, mas não é, sabendo-se que a tendência para prolongar a jornada de trabalho através destas plataformas é hoje um facto incontestável. É como se o online funcionasse em todas as dimensões, incluída a do trabalho assalariado. Prolongamento da jornada de trabalho que não é reconhecido como tal e a que, portanto, não corresponde efectiva remuneração. Não me interessa aqui a questão jurídica, até porque aquelas são as horas da prestação do serviço e, portanto, já se sabe que fora delas não haverá remuneração. Mas já se sabe também que pode, eventualmente, haver trabalho… não reconhecido como tal, em todas as suas dimensões, incluída a financeira.
Há uns anos tive ocasião de arguir uma tese de doutoramento na Universidade Complutense de Madrid precisamente sobre este tema: “Las TICs en los cambios laborales”. Autora: Begoña Ballesteros Carrasco. Uma posição muito crítica, a sua, sobre este desvio no uso das TICs, ao ponto de defender que hoje, através delas, está a ser restaurada, na prática, a velha teoria marxiana da mais-valia absoluta, ou seja, a da extracção de mais-valia através do prolongamento da jornada de trabalho, sem compensação salarial.
Resumo aqui as conclusões de Ballesteros Carrasco relativas à introdução das TICs nas relações de trabalho:
- “plustrabalho” e invisibilidade do tempo efectivo de trabalho;
- intensificação do tempo de trabalho e sua desqualificação;
- desequilíbrio entre produtividade e salário;
- versatilidade laboral do trabalhador, não reconhecida;
- “não desconexão” entre tempo de vida e tempo de trabalho;
- percentagem crescente de trabalho não pago;
- individualização progressiva das relações laborais com crescente enfraquecimento do seu quadro normativo geral;
- contradição entre inovação tecnológica e organização social;
- muito capital especulativo, pouco investimento produtivo, onde os Estados não exigem criação de emprego e investimento produtivo, mas flexibilização do trabalho.
Já temos que chegue. A posição da autora é talvez excessivamente drástica, e mesmo unilateral, mas colhe a fundo o problema. As tecnologias permitem hoje uma intensa intrusão do trabalho no período pós-laboral, sem reconhecimento salarial. Ou seja, o prolongamento e intensificação da jornada de trabalho é possível através das plataformas tecnológicas individuais, tornando esse trabalho socialmente invisível e financeiramente não reconhecido.
Este fenómeno, ao que parece, está a ser regulamentado em muitos países (por exemplo, em França), protegendo os trabalhadores da intrusão laboral em tempo pós-laboral, a coberto da organicidade, flexibilidade e mobilidade destas plataformas tecnológicas, garantindo, deste modo, a justa separação entre tempo de vida e tempo de trabalho. E este é um aspecto muito importante do problema. Mas há outra questão não menos importante e que tem sido objecto de menor atenção, apesar de muito delicada para as instituições e empresas: a da intrusão das plataformas tecnológicas privadas no tempo formal de trabalho.
Ou seja, o que se está a verificar também (sobretudo em empresas e instituições com trabalho mais flexível) é uma crescente colonização do tempo formal de trabalho pelo uso de plataformas privadas usadas para finalidades puramente pessoais e não empresariais ou institucionais. Ou seja, o tempo de trabalho remunerado é subtraído, pelo próprio trabalhador, às empresas e instituições para fins meramente privados, com prejuízo para a produtividade e consequentemente para a empresa ou instituição. A intrusão tem, pois, um duplo sentido.
Dois lados de uma mesma questão
Mas estes são os dois lados de uma mesma questão: como metabolizar socialmente, mas também individualmente, este fabuloso avanço tecnológico (o das plataformas tecnológicas móveis) que se está a revelar altamente intrusivo em ambos os sentidos, ou seja, do privado no social e do social no privado? Esta metabolização (social e individual) das tecnologias, absolutamente necessária, deveria ser orientada organicamente (assumindo-as como meras próteses orgânicas facilitadoras de processos), regulada racionalmente, através da promoção de inteligência crítica no seu uso, e enquadrada finalisticamente, para que elas não acabem por colonizar as nossas vidas, roubando aquela organicidade que é própria do ser humano, enquanto ser natural.
A questão é, pois, mais vasta e não pode ser reduzida a uma perspectiva contabilística, simplesmente instrumental, sindical, patronal ou produtivística. Talvez nunca como hoje a tecnologia tenha ganho uma capacidade tão intrusiva e tão orgânica como aquela que as TICs atingiram, ao ponto de se tornar necessário fazer uma autêntica revolução cultural e civilizacional para poder acompanhar o seu ritmo de desenvolvimento e o seu gigantesco poder de intrusão e até mesmo de captura do ser humano.
Neste sentido, é verdade que ao desenvolvimento tecnológico não tem correspondido uma efectiva reorganização social capaz de responder aos desafios cada vez mais complexos que a tecnologia nos está a fazer. Uma reorganização que só poderá apostar na intensificação das capacidades culturais e reflexivas dos cidadãos, as únicas que poderão, mais do que os instrumentos normativos formais ou coercivos, regular comportamentos e a utilização dos fantásticos meios de acção e de transformação de que o ser humano hoje dispõe. A revolução de hoje só pode ser a revolução cultural que se produza na cabeça de cada um de nós, sob pena de acabarmos por nos mostrar incapazes de metabolizar responsavelmente instrumentos tão fascinantes e poderosos quão perigosos como as TICs.
É por isso que considero que a discussão não deva ter o seu lugar na concertação social antes de um debate aprofundado sobre o processo de metabolização social e individual das tecnologias nas instâncias mais vocacionadas para reflectirem sobre o futuro das nossas sociedades, designadamente nas Universidades e nos grandes fóruns culturais (sobre este assunto tive ocasião de reflectir de modo mais articulado em “Política, Sociedade e Tecnologias das Informação” – joaodealmeidasantos.com, secção “Ensaios”).
Que fazer?
Se esta discussão mais global não tiver lugar arriscamo-nos a agir num mundo que cada vez mais toma conta de nós, sem que disso tenhamos a mínima consciência. Ou, pior, pensemos que com uma plataforma na mão teremos o mundo ao nosso alcance, sem nos darmos conta de que é ela (e quem a controla) que nos tem completamente ao seu alcance. Acho mesmo que cada vez mais se torna necessário cultivar a capacidade de nos “desconectarmos” sempre que a “conexão” não seja necessária.
Não quero, com isto, dizer que as TICs não estejam a produzir uma fantástica revolução civilizacional, cultural e de processos de todo o tipo. Sou um seu defensor e utilizador e considero que os efeitos positivos são superiores aos negativos. Mas, por isso mesmo, torna-se necessário acompanhar este processo com uma enorme vigilância crítica e construtiva que tenda para a sua metabolização, ou seja, para uma sua incorporação controlada e reflectida. E, se assim for, com elas poderemos construir um futuro de maior liberdade e de maiores possibilidades de afirmação e de progresso. Caso contrário, estas tecnologias da liberdade podem tornar-se instrumentos sofisticados de opressão. Que não será somente simbólica!