Veio o 25 de Abril, depois o 11 de Março, chegou quente o Verão do Companheiro Vasco. Cravos e punhos erguidos, barbaças aterradoras. Muita gritaria para que a Verdade penetrasse nos ouvidos empedernidos dos matarruanos: o povo unido jamais será vencido!
Na vanguarda, o sr. João: chegara a hora da mudança. E avançava projecto emancipador: uma cooperativa agrícola, onde os camponeses recebessem atempadamente a justa paga do seu labor, sem distinção entre pobres e ricos.
Defendia a ideia no café, no largo, respeitosamente escutado — afinal era o senhor João, proprietário de muitas terras, empregador de servos —, mas, mal virava costas,
— O que ele quer sei eu!
Sabiam. Sabiam desse saber de experiência feito que toda a gente é feita da mesma massa, a querer tudo para si, nada para os outros. Que Deus fez torto o Mundo e não há Messias que o endireite. Que o homem é o ladrão do homem. Bastava ver a ribaldaria em que, derribado o regime de Marcelo Caetano, o país mergulhara. Alferes imberbes eram promovidos à capitães, a majores, e eram esses badamecos que agora nos governavam. Não que negassem razão ao sr. João. Bem sabiam que na agricultura o lucro é sempre, e só, dos intermediários. E o que penavam para receber o dinheiro do vinho vendido, esmolando adiantamentos junto dos compradores, figurões da terra, os quais pagavam quando e como queriam?
Mas no minifúndio os camponeses têm dupla personalidade, simultaneamente proprietários e assalariados; cuspiam nas mãos, como se nelas segurassem o cabo da enxada, empurravam a boina para o alto da cabeça, acenavam afirmativamente, sim senhor, uma cooperativa é coisa boa, isso é que nos resolvia as coisas, mas mal o sr. João virava costas costas lá vinha
— O que ele quer sei eu!
Desconfiavam dele. Era ateu. Desconfiavam da sua conversa: Jesus, dizia, foi o primeiro comunista. Desconfiavam da família: um tio, republicano velho, estivera envolvido nos motins contra Salazar e, murmurava-se, em morte de homem. Um irmão, desertor, esteve fugido em França. Era do MDP/CDE. Para os camponeses — comunista, como sempre tinham suspeitado.
A cooperativa avançava, empregava até retornados de Angola na abertura dos alicerces:
— Já arranjaste trabalho?
— Ando na construção da adega dos comunistas!
Nunca passou das fundações. Matou-a a caça aos comunistas, no Verão Quente de 75. Pouco importava se eram militantes ou meros simpatizantes. O ódio ancestral ao jacobinismo, aos pedreiros livres, aos ateus, renascera com as ocupações de terras no Alentejo, e os mais raivosos eram aqueles que de seu pouco iam além dos sete palmos que nos esperam no cemitério.
A cooperativa, que comprara uvas, não as pagava: o vinho, dizia o sr. João, não escoava, perdidos os mercados africanos com a descolonização. Mas tinha esperança na ajuda revolucionária:
— A União Soviética vai comprar o nosso vinho!
Não fazia diferença o serem vermelhos — contanto que o bebessem. E durante algum tempo sonhou-se largo, seriam muitos milhões de bêbedos eslavos a trocar o ruim vodka, que tanto mal faz à saúde, pelo nosso tinto — quem sabe se graças a ele se operaria um dos milagres de Fátima, a conversão da Santa Rússia! Mas os tempos não estavam para milagres, a fraternidade revolucionária era mera propaganda. Os russos não nos compraram o vinho.
E numa noite homens revoltados, desconfiados de mescambilha, pintaram em letras vermelhas no muro da casa do sr. João:
“Pequeno Cunhal
Paga as uvas do pessoal!”
Litografia
Cipriano Dourado
Vindimas
Assinada e datada 55
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