A utilização da manipulação e da mentira para atacar a Administração Pública e os seus trabalhadores.
Neste estudo analiso e procuro desmontar, utilizando apenas dados oficiais, a campanha articulada contra a Administração Pública e os seus trabalhadores que se registou na semana passada em que quase todos os órgãos de informação publicaram noticias praticamente com os mesmos títulos, o que dá a ideia de uma origem comum, sobre o pretenso número excessivo de trabalhadores das Administrações Públicas. Um dos órgãos de informação publicou um artigo de opinião em que afirmava que os ganhos médios dos técnicos superiores do Estado era 3.251€, o que é totalmente falso, pois é atualmente 1980€, e entra-se na Função Pública apenas recebendo 1200€. 75% dos trabalhadores da Administração Pública levam 10 anos para subir de nível remuneratório.
A Administração Pública enfrenta atualmente uma grave crise pois não consegue contratar os trabalhadores mais qualificados e competentes e há áreas, como a de informática, em que a contratação de técnicos superiores é praticamente impossível. O governo fala na digitalização maciça dos serviços públicos, mas quer faze-lo sem trabalhadores com as competências necessárias, o que é impossível. A Administração Pública está a transformar-se num “maná” para as empresas privados de serviços especializados. São contratados, porque os serviços não têm trabalhadores qualificados, e instalam-se por vezes durante anos nos serviços públicos.
Estudo
A utilização da manipulação e da mentira para atacar a Administração Pública e os seus trabalhadores
Na semana passada registou-se um estranho e articulado ataque aos trabalhadores da Função Pública e, consequentemente, à Administração Pública, pois esta não existe sem aqueles. O argumento utilizado era de que o seu número nunca foi tão elevado. As “cachas” dos órgãos de informação multiplicaram-se criando-se, desta forma, a ideia na opinião pública de que havia funcionários públicos a mais no nosso país. Na SIC Noticias afirmava-se que o “Numero de funcionários públicos em Portugal muito próximo de ser o mais alto de sempre”; no EXPRESSO que o “Número de funcionários públicos perto do nível mais alto de sempre”; na VISÃO “O número de funcionários públicos está a aumentar desde a saída da troika e está hoje no valor mais elevado desde que existem dados”; no Diário de Notícias “Criação impressionante de emprego assenta em subida recorde de funcionários públicos”; etc., etc.
Os títulos das notícias (“cachas”) são coincidentes ou tão semelhantes que até parece que saíram da mesma “Central de informação”. E um jornal, num artigo de opinião da sua responsável, chegou mesmo a divulgar que, em 2019, “o ganho médio dos técnicos superiores do Estado ascendia a 3.251€, enquanto no setor privado não ia além dos 2.452€”, o que é falso em relação ao do Estado, como se vai mostrar neste estudo. Deixar passar isto sem uma resposta era alimentar esta campanha contra a Administração Pública pois, como diz o ditado, “quem cala consente”. Infelizmente e estranhamente os sindicatos da Função Pública mantiveram-se passivos e mudos perante esta manipulação da opinião pública contra os trabalhadores da Função Pública.
O aumento do número de funcionários públicos no período 2011/2021 e razões
O gráfico 1, com dados da DGAEP, mostra a variação dos trabalhadores das Administração Pública.
Gráfico 1 – Variações do numero de trabalhadores das Administrações Públicas entre 2011/2021 DGAEP
Entre 2011 e 2015, com a “troika” e o PSD/CDS verificou-se uma destruição maciça de empregos nas Administrações Públicas (78328 postos de trabalho), causando o caos nos serviços públicos que deixaram de ter capacidade para responder a muitas necessidades importantes dos portugueses. A situação do SNS era dramática. Com a entrada em 2015 de um governo apoiado pela esquerda registou-se uma gradual e lenta recuperação do que fora destruído.
No entanto, para que fique clara a manipulação a que foram sujeitos os portugueses na semana passada interessa conhecer em que áreas se verificou o aumento de trabalhadores e razões. Entre 2015 e jun.2021, o aumento do número de trabalhadores das Administrações Públicas verificou-se fundamentalmente nas seguintes categorias profissionais: Técnicos Superiores: +18.318; Assistentes Técnicos e Operacionais: +20.450; Professores do ensino básico, secundário e superior: +23.299; Profissionais de saúde (SNS): +19.829, sendo +5.904 médicos e +11.746 enfermeiros.
Mesmo uma parte significativa do aumento dos Assistentes Técnicos e Operacionais (20.450) foi para reforçar o SNS. Portanto, serviços fundamentais para os portugueses podendo assim avaliar a importância deste reforço e a forma descontextualizada com foi tratada pelos media.
Um aspeto negativo em todo este processo de recuperação do que fora destruído durante o período da “troika” é que uma parte significativa está a ser feita com base em trabalho precário, que o governo diz aos privados que deve ser reduzido, mas que sua própria “casa” faz o contrário, aumentando-o como mostra o gráfico 2 com dados da DGAEP.
Gráfico 2 – Variações do numero de trabalhadores com contratos a prazo nas Administrações Públicas – 2012/2021 DGAEP
Entre dez.2012 e jun.2021, o número de trabalhadores com contratos a prazo nas Administrações Públicas aumentou em 10.039. Mas foi fundamentalmente com a pandemia que o seu número disparou. Entre dez.2019 ejun.2021 verificou-se um aumento de 20.819. Não é com a precariedade que se capacita a Administração Pública, além de ser uma causa de indignidade e da baixa produtividade do trabalhador.
Quando a mentira é utilizada para manipular a opinião pública contra os trabalhadores da Administração Pública
No jornal de NEGÓCIOS de 24/8/2021, a diretora Diana Ramos num artigo de opinião com o título “O que dizem os números” escreveu o seguinte (transcrevo): “Em 2019, os dados mais recentes, o ganho médio dos técnicos superiores do Estado ascendia a 3.251 euros, enquanto o setor privado não ia além dos 2.452 euros”. Comparemos estes dados, que não dizem qual é fonte o que é estranho, com os dados referentes à remuneração média mensal ilíquida e ao ganho médio anual ilíquido dos técnicos superiores das Administrações Públicas divulgados pela Direção Geral da Administração Pública (DGAEP) do Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública, a fonte credível sobre a Administração Pública.
Gráfico 3 – Remuneração Média Mensal Bruta e Ganho Médio Mensal Bruto dos Técnicos Superiores do Estado (apenas Administração Central) – 2011/2021 DGAEP
Como se conclui quer a Remuneração Média Mensal Bruta quer o Ganho Médio Mensal Bruto dos Técnicos Superiores do Estado (considerou-se apenas a Administração Central, pois se incluísse a Administração Local e Regional os valores seriam ainda mais baixos), estão muito abaixo dos 3251€ referidos por Diana Ramos. Mas parece que vale tudo no ataque à Administração Pública e aos seus trabalhadores, mesmo o sacrifício da objetividade, da verdade e do contraditório que deviam ser princípios sagrados para um jornalista.
Segundo dados dos quadros de pessoal divulgados pelo Ministério do Trabalho, os “Quadros superiores” no setor privado auferiam, em 2019, um ganho médio mensal ilíquido de 2452€. Aqui o valor já está certo, o que não acontece com o do Estado, pois o verdadeiro não servia. Mas é desta forma que se “reconstrói a realidade” para atacar os trabalhadores das Administrações Públicas, como fossem os privilegiados.
Entre 2011 e 2021, a remuneração media bruta dos técnicos superiores do Estado aumentou apenas 0,6%, e o ganho médio bruto subiu somente 1,7% (gráfico 3), quando os preços, no mesmo período, aumentaram 6,7%. Para além disso registou-se um enorme aumento de IRS e o desconto para a ADSE subiu de 1,5% para 3,5% (+133%). Por tudo isto, o poder de compra do ganho líquido dos técnicos superiores do Estado é, atualmente, inferior em 11,7% ao poder de compra de 2011. E o mesmo acontece com muitos profissionais do Estado (ex. médicos).
As dificuldades crescentes que está a enfrentar a Administração Pública para contratar trabalhadores com as qualificações e competências que necessita
Em 2019, o Ministério das Finanças decidiu centralizar a contratação dos técnicos superiores para toda a Administração Central. Para isso, anunciou em julho de 2019 um concurso para a contratação de 1000 técnicos superiores. Inscreveram-se mais de 18000 candidatos. Só ao fim de 2 anos (em 2021) é que conseguiu finalizar o concurso. Dos 1000 técnicos superiores só conseguiu contratar pouco mais de metade. E isto porque a maioria dos candidatos não reunia as competências para as funções previstas.
Para que se possa ter uma ideia da situação atual na Administração Pública basta referir o que acontece na ADSE, que não é financiada pelo Orçamento do Estado, mas sim pelos beneficiários e que tem no IGCP mais de 700 milhões € dos descontos dos trabalhadores e aposentados das Administrações Públicas.
O quadro de pessoal aprovado é de 265 trabalhadores, mas tem apenas 179, tendo perdido 10 trabalhadores em 2020, o que agravou ainda mais a situação. Tem apenas 49 Técnicos superiores, apesar do seu quadro de pessoal prever 74 técnicos superiores. Tinha pedido ao Ministério das Finanças 10 técnicos superiores, mas recebeu em 2021 apenas um técnico superior, e não da área em que está mais necessitado. O MEAP anunciou que vai lançar um novo concurso, que poderá levar mais 2 anos.
Mas o problema grave é que a Administração Pública não atrai os trabalhadores mais competentes e qualificados. Um técnico superior entra na Administração Pública com uma remuneração de 1200€. Desde 2010, a Tabela Única de Remunerações apenas teve um aumento ridículo de 0,3% em 2020. Para subir de nível remuneratório, 75% dos trabalhadores das Administrações Públicas só o conseguem ao fim de 10 anos devido à existência de um sistema de avaliação anacrónico e injusto que não permite compensar os trabalhadores mais qualificados e empenhados. Por esta razão as carreiras na Administração Pública estão praticamente congeladas.
Há áreas onde não se consegue contratar qualquer trabalhador, como acontece com os informáticos. E isto apesar do governo dizer que está fortemente empenhado na digitalização dos serviços públicos, mas sem trabalhadores qualificados é tarefa impossível. Só vai para a Administração Pública quem não encontra um emprego no setor privado, pois os trabalhadores com maiores competências e qualificações ficam neste.
O concurso para a contratação de trabalhadores permanentes nas Administrações Públicas é anacrónico, burocrático, para dar qualquer passo precisa sempre da autorização previa das tutelas, nomeadamente do Ministério das Finanças que empata, dificulta e adia as decisões e faz continuas ingerências na gestão diária mesmo violando a lei. Para além dos técnicos superiores, a ADSE precisava de contratar cerca de 20 assistentes técnicos e operacionais. Abriu concurso, inscreveram-se 3000 candidatos, e já se passou mais de um ano e nenhuma seleção foi ainda realizada. Muitos candidatos desistiram, pois, se estivessem à espera da ADSE já tinham morrido.
É esta a situação dramática atual da Administração Pública portuguesa. A Administração Pública está bloqueada e a degradar-se, e o governo nada de concreto faz para mudar. A Administração Pública está a ser um maná para as empresas de serviços do setor privado. Muitas delas são contratadas e instalam-se durante anos nos serviços públicos. É de prever, se não existir um forte investimento em recursos humanos qualificados para a Administração Pública, que a utilização dos fundos comunitários – Plano de Recuperação e Resiliência e o Quadro Financeiro Plurianual 2021/2027 – seja um desastre e o país continue mergulhado no atraso.
Recorde-se que o Portugal 2020, que devia terminar o ano passado, em junho de 2021 ainda estavam para executar 9.462 milhões €, ou seja, 36,4% dos 25.992 milhões € de fundos comunitários atribuídos pela U.E. a Portugal. Há alertas de todos os lados, mas o governo mantém-se surdo e mudo. Eu sou gestor público eleito pelos representantes dos beneficiários da ADSE, conheço este problema porque o vivo diariamente, quando leio artigos como o da Diana Ramos penso: “o jornalismo devia ser mais de investigação, e não meras opiniões pessoais muitas vezes baseadas em factos não verdadeiros e no desconhecimento da realidade”.