Dançando a música brasileira. A popular de Chico Buarque a Elis Regina, de Dorival Caymi a Carmen Miranda, de Adoniran Barbosa e Quinteto Violado a Ary Barroso, de Milton Nascimento a Egberto Gismonti e Geraldo Vandré. E a erudita contemporânea de Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Almeida Prado e Ayrton Escobar.
Dançando a literatura em “A Infanticida Marie Farrar” de Bertolt Brecht, em “Diadorim” de Guimarães Rosa, em “Os Estatutos do Homem” do poeta Thiago de Mello, e o teatro em “Navalha na Carne” de Plínio Marcos. São 45 anos dançando em qualquer espaço. No Brasil, nas Américas, na Europa. No meio da revolução sandinista na Nicarágua ou nas ruínas de Áquila na Itália. Nas favelas do Rio de Janeiro e em uma barca navegando pelo Rio São Francisco. Em escola de samba no Carnaval, em presídios, no parque indígena do Xingu, em escolas públicas ou históricos palcos como o do Teatro Nacional de Manaus e dos teatros municipais de São Paulo e Rio de Janeiro. Sem preconceito. Sem fronteira. Sem intolerância estética, política ou ideológica.
Outubro de 1971. O Brasil vivia o momento mais agudo da ditadura militar instalada em 1964. A tesoura da Censura agia sobre a imprensa e, em especial, sobre o teatro e a música popular. Uma bailarina húngaro-brasileira sobrevivente dos campos de concentração e um brasileiro nascido no interior, e já com brilhante carreira nos palcos europeus, encontram-se em “Convite à Dança”, programa da primeira e recém-inaugurada televisão pública no Brasil, a TV Cultura de São Paulo. Terminada a série de programas, ficou a pergunta. E agora? Na falta de condições de trabalho, Márika Gidali e Décio Otero precisariam criar suas próprias condições, se quisessem continuar a dançar no Brasil.
Em torno da pequena academia de dança que abriram em São Paulo nasceu o Ballet Stagium, uma companhia particular e estável à margem do governo e das verbas públicas. Apoio só o de amigos da dança e, sobretudo, do teatro, para quem Márika já criava coreografias desde meados dos anos de 1960. Do ator Paulo Autran, o casal ouviu o conselho de sair Brasil afora, sem se limitar a apresentações em São Paulo e a poucas capitais como Rio de Janeiro e Curitiba. No diretor de teatro Ademar Guerra o Stagium encontrou o ponto de referência artístico e intelectual para desenvolver a sua dança.
Embora formados nas técnicas do chamado balé clássico, Márika e Décio tinham necessidade de romper amarras e limites para alcançar um público além daqueles habituais consumidores de dança em teatros de poltronas aveludadas. Isso os levou ao encontro de novas plateias, estabelecendo uma troca que consolidou o tripé das indagações a orientar o trabalho da companhia: o que dançar, para quem dançar e como dançar. Sem abandonar o rigor da técnica, os bailarinos se impunham ao lado do seu fazer artístico serem cidadãos comprometidos com o seu país e o seu tempo. A primeira coisa a chamar a atenção nos primeiros tempos do Stagium parecia sem muita importância. Ao entrar nos teatros o público encontrava já em cena os bailarinos em malhas de ensaio, fazendo aula, exercícios de aquecimento, preparando-se para o espetáculo. Com esse recurso brechtiano, quebrava-se a barreira com a plateia, principalmente com as pessoas que se aproximavam do balé pela primeira vez. Os mais conservadores, que viam a dança como privilégio, torceram o nariz para essa desmistificação, mas logo compreenderam que isso não afetava a qualidade artística da companhia.
O Ballet Stagium surgiu dois anos antes de Pina Bausch. Talvez por ser uma companhia na periferia do mundo, em um país “là-bas”, dançando onde lhe seja dado dançar, sem preconceito de lugar nem de plateia, não se saiba do pioneirismo do trabalho de Márika Gidali e Décio Otero
Observe-se, por fim, que o Ballet Stagium surgiu dois anos antes de Pina Bausch assumir o Balé do Teatro de Wuppertal (Alemanha) em 1973 e radicalizar sua ruptura com a formação clássica e a proposta de teatro-dança, cujas primeiras manifestações remontam ao início do século vinte. Talvez por ser uma companhia na periferia do mundo, em um país “là-bas”, dançando onde lhe seja dado dançar, sem preconceito de lugar nem de plateia, não se saiba do pioneirismo do trabalho de Márika Gidali e Décio Otero. Pioneirismo de dançar a melhor música popular – mais uma heresia contra os cânones da dança apegada a temas clássicos. Pioneirismo de abandonar as sapatilhas, os paetês e as lantejoulas e colocar em cena o homem brasileiro. Pioneirismo de dançar obras fundamentais da literatura brasileira. Pioneirismo de estimular o surgimento de grupos e companhias de dança por todo o Brasil.
Este é o Ballet Stagium que, inexplicavelmente, Portugal nunca viu dançar. Perseverança para encarar dificuldades, que não são poucas, sem esmorecer. Perseverança para resistir a todas as tentações do glamour que poderiam desviar o Stagium do seu caminho. Perseverança para sobreviver à indiferença e à ignorância de políticas públicas e seus burocratas de plantão em diferentes períodos. Coragem e perseverança para desafiar os riscos de ser artista, comprometido com o seu tempo e com os homens do seu tempo, sem ceder à vaidade tola e ao brilho passageiro. Por tudo isso, a dança no Brasil tem nome: Stagium. E hoje, a caminho de 46 anos, a companhia persevera na coragem de Márika Gidali e Décio Otero.
E se alguém lhes diz, a lamentar as dificuldades atuais, que não é fácil, eles têm uma resposta otimista: E quem disse que seria?
O fotógrafo Emidio Luisi registrou o trabalho do Ballet Stagium desde o início até hoje. Suas fotos estão registradas em livro.
Oswaldo Mendes é ator e autor de teatro
Texto original em português do Brasil