Deitei-me ontem aqui à beira de um rio baldio sonhando já. Desvendei nele a coragem de viagens infinitas, o percurso sinuoso das suas artes embrenhadas de alma e sangue frio.
Devo ter sonhado o rio a distanciar-se, a perder-se nas maravilhas que a natureza oferece e eu encostado a uma pedra de verdades. Não bebi da sua água mas sorvi dele a verdade da vida, um pedaço que seja para que me ensinam os apóstolos dos percursos ainda por descobrir nesta maresia de rio chamada infinito, sim, deitei-me para descansar as verdades que a vida me ensina, os dilúvios onde giestas embaraçadas percorrem como que se o rio fosse a sua vida, a minha vida, a vida dos que dele bebem a sabedoria que ele contém.
Bebi da sua arte observando o longe, o distante, o próximo na minha cabeça atenta. O rio era uma falésia de goivos voando e sobrevoando as suas ondas e quedas, a sua corrente, observei calado e sentando-o a distanciar-se sonolento, mas fértil de vida, os sinos ao longe a vangloriarem a tarde.
Deitei-me com ânsias nesta azia repleta de viagens, de recordações e margens, o vulto da distância sobre a nossa cabeça e nós calados sentados na rampa que dá para o rio o nos faz sonhar, pensar e repensar o longe, o destino deste rio acalentando-me numa só voz palavras escritas na areia. Sento-me sempre que a vontade me inspira vê-lo, preciso e não sei por quê ainda de rios, de ver as águas fluírem no mesmo sentido que segue para sul, sorver também o calor que nos cobre de risos. Desfolho a natureza num subtil gesto de paciência e vontade e vejo-o verde a ladear-nos, uns passos à frente e a água ainda desfila a sua longa caminhada, a sala nas memórias repletas de vontade, uma vontade infindável de defini-las, descrevê-las numa esfera de palavras e vontades a céu aberto, onde em tempos a tia Zulmira me recordava dos seus tempos para ela verdadeiros.
Brilhantes silêncios caminham sobre a vista ali proposta, ideias que se misturam com a tarde, vontades imensas e reviver os dias, crescer aos poucos aprendendo com a natureza. À volta tudo é presente, tudo é instante, tudo deambula num fervor de ânsias que crescem como pássaros distraídos sobrevoando o momento, a voz trémula da Dona Zulmira encaminha-nos para um almoço quieto sob árvores que balouçam largando folhas cansadas, uma mesa de pau velho e seco fazendo-me lembrar a juventude, um almoço de frutas e legumes tirados da horta inventada nos quintais da vida, nas salas do tempo relembrando os templos e os jardins da Grécia.
Assim sendo a sala de casa, a cama voltada para a janela que dá para o nascer do sol, os lençóis de cetim brilhantes encobrem-me enquanto durmo ainda. Pelas frinchas a luz da rua irrompe tentando despertar-me e que vontade de continuar a bailar pelas minhas ausências deste sonho de verdades, um sono suculento embrenha-me, o copo da água trazida do rio ainda cheio refresca-me e parto de novo sonhando como que já nada mais interessasse, sentir um navio distante a percorrer-se sóbrio, invento instantes enquanto me distraio com as curvas de um rio que desce no sentido da vida, crescendo quando se junta ao mar, a minha vida ali estampada.
Beber da arte da vida é estar sentado junto ao rio, não sentir a velocidade da vida, beber dos tempos, sentir os instantes deambularem
devagar por entre todas as viagens que percorrerem comigo o meu desejo, sim, sinto-me nascer todos os dias.
do livro Reflexões Profundas,
Vítor Burity da Silva
Crónicas