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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Uma bela história: Abradatas e Panteia II

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Abradatas, então, partirá na campanha de Ciro contra o Egipto. Antes disso, há oportunidade para a despedida da sua amada esposa (6.4.2-11). É esta quem o prepara os atavios do esposo e o reveste da sua armadura. Esta cena lembra uma outra, cinematográfica, do filme The Last Samurai the Edward Zwick, em que Taka (Kato Koyuki) arma Nathan Allgren (Tom Cruise), cena que culmina em beijo.

L’addio tra abradata e pantea de Julien de Parme

Desconhecemos se o argumento do filme deve alguma coisa à cena de Xenofonte, mas a semelhança existe. A diferença é que a cena fílmica é toda ela quase dança cerimonial, lenta e silenciosa, o ardor do amor nascente contendo-se na modéstia dos rostos e dos gestos, modéstia nipónica; na Ciropedia há a beleza da descrição dos elementos, de aparato e fausto asiático, tudo preparado pelo zelo e gosto do amor da esposa, e a beleza do diálogo — ou não apreciasse um grego um bom diálogo e um bom discurso, a palavra falada.

Leiamos:

καὶ τῷ Ἀβραδάτᾳ δὲ τὸ τετράρρυμον ἅρμα καὶ ἵππων ὀκτὼ παγκάλως ἐκεκόσμητο.

ἐπεὶ δ᾽ ἔμελλε τὸν λινοῦν θώρακα, ὃς ἐπιχώριος ἦν αὐτοῖς, ἐνδύεσθαι, προσφέρει αὐτῷ ἡ Πάνθεια χρυσοῦν κράνος καὶ περιβραχιόνια καὶ ψέλια πλατέα περὶ τοὺς καρποὺς τῶν χειρῶν καὶ χιτῶνα πορφυροῦν ποδήρη στολιδωτὸν τὰ κάτω καὶ λόφον ὑακινθινοβαφῆ. ταῦτα δ᾽ ἐποιήσατο λάθρᾳ τοῦ ἀνδρὸς ἐκμετρησαμένη τὰ ἐκείνου ὅπλα.

ὁ δὲ ἰδὼν ἐθαύμασέ τε καὶ ἐπήρετο τὴν Πάνθειαν·

οὐ δήπου, ὦ γύναι, συγκόψασα τὸν σαυτῆς κόσμον τὰ ὅπλα μοι ἐποιήσω;

μὰ Δί᾽, ἔφη ἡ Πάνθεια, οὔκουν τόν γε πλείστου ἄξιον· σὺ γὰρ ἔμοιγε, ἢν καὶ τοῖς ἄλλοις φανῇς οἷόσπερ ἐμοὶ δοκεῖς εἶναι, μέγιστος κόσμος ἔσῃ.

ταῦτα δὲ λέγουσα ἅμα ἐνέδυε τὰ ὅπλα, καὶ λανθάνειν μὲν ἐπειρᾶτο, ἐλείβετο δὲ αὐτῇ τὰ δάκρυα κατὰ τῶν παρειῶν.

ἐπεὶ δὲ καὶ πρόσθεν ὢν ἀξιοθέατος ὁ Ἀβραδάτας ὡπλίσθη τοῖς ὅπλοις τούτοις, ἐφάνη μὲν κάλλιστος καὶ ἐλευθεριώτατος, ἅτε καὶ τῆς φύσεως ὑπαρχούσης· λαβὼν δὲ παρὰ τοῦ ὑφηνιόχου τὰς ἡνίας παρεσκευάζετο ὡς ἀναβησόμενος ἤδη ἐπὶ τὸ ἅρμα.

ἐν δὲ τούτῳ ἡ Πάνθεια ἀποχωρῆσαι κελεύσασα τοὺς παρόντας πάντας ἔλεξεν·

ἀλλ᾽ ὅτι μέν, ὦ Ἀβραδάτα, εἴ τις καὶ ἄλλη πώποτε γυνὴ τὸν ἑαυτῆς ἄνδρα μεῖζον τῆς αὑτῆς ψυχῆς ἐτίμησεν, οἶμαί σε γιγνώσκειν ὅτι καὶ ἐγὼ μία τούτων εἰμί. τί οὖν ἐμὲ δεῖ καθ᾽ ἓν ἕκαστον λέγειν; τὰ γὰρ ἔργα οἶμαί σοι πιθανώτερα παρεσχῆσθαι τῶν νῦν λεχθέντων λόγων. [6]

ὅμως δὲ οὕτως ἔχουσα πρὸς σὲ ὥσπερ σὺ οἶσθα, ἐπομνύω σοι τὴν ἐμὴν καὶ σὴν φιλίαν ἦ μὴν ἐγὼ βούλεσθαι ἂν μετὰ σοῦ ἀνδρὸς ἀγαθοῦ γενομένου κοινῇ γῆν ἐπιέσασθαι μᾶλλον ἢ ζῆν μετ᾽ αἰσχυνομένου αἰσχυνομένη· οὕτως ἐγὼ καὶ σὲ τῶν καλλίστων καὶ ἐμαυτὴν ἠξίωκα. καὶ Κύρῳ δὲ μεγάλην τινὰ δοκῶ ἡμᾶς χάριν ὀφείλειν, ὅτι με αἰχμάλωτον γενομένην καὶ ἐξαιρεθεῖσαν αὑτῷ οὔτε ὡς δούλην ἠξίωσε κεκτῆσθαι οὔτε ὡς ἐλευθέραν ἐν ἀτίμῳ ὀνόματι, διεφύλαξε δὲ σοὶ ὥσπερ ἀδελφοῦ γυναῖκα λαβών.

πρὸς δὲ καὶ ὅτε Ἀράσπας ἀπέστη αὐτοῦ ὁ ἐμὲ φυλάττων, ὑπεσχόμην αὐτῷ, εἴ με ἐάσειε πρὸς σὲ πέμψαι, ἥξειν αὐτῷ σὲ πολὺ Ἀράσπου ἄνδρα καὶ πιστότερον καὶ ἀμείνονα.

ἡ μὲν ταῦτα εἶπεν·

ὁ δὲ Ἀβραδάτας ἀγασθεὶς τοῖς λόγοις καὶ θιγὼν αὐτῆς τῆς κεφαλῆς ἀναβλέψας εἰς τὸν οὐρανὸν ἐπηύξατο·

ἀλλ᾽, ὦ Ζεῦ μέγιστε, δός μοι φανῆναι ἀξίῳ μὲν Πανθείας ἀνδρί, ἀξίῳ δὲ Κύρου φίλῳ τοῦ ἡμᾶς τιμήσαντος.

ταῦτ᾽ εἰπὼν κατὰ τὰς θύρας τοῦ ἁρματείου δίφρου ἀνέβαινεν ἐπὶ τὸ ἅρμα. [10] ἐπεὶ δὲ ἀναβάντος αὐτοῦ κατέκλεισε τὸν δίφρον ὁ ὑφηνίοχος, οὐκ ἔχουσα ἡ Πάνθεια πῶς ἂν ἔτι ἄλλως ἀσπάσαιτο αὐτόν, κατεφίλησε τὸν δίφρον· καὶ τῷ μὲν προῄει ἤδη τὸ ἅρμα, ἡ δὲ λαθοῦσα αὐτὸν συνεφείπετο, ἕως ἐπιστραφεὶς καὶ ἰδὼν αὐτὴν Ἀβραδάτας εἶπε·

θάρρει, Πάνθεια, καὶ χαῖρε καὶ ἄπιθι ἤδη.

ἐκ τούτου δὴ οἱ εὐνοῦχοι καὶ αἱ θεράπαιναι λαβοῦσαι ἀπῆγον αὐτὴν εἰς τὴν ἁρμάμαξαν καὶ κατακλίναντες κατεκάλυψαν τῇ σκηνῇ. οἱ δὲ ἄνθρωποι, καλοῦ ὄντος τοῦ θεάματος τοῦ τε Ἀβραδάτου καὶ τοῦ ἅρματος, οὐ πρόσθεν ἐδύναντο θεάσασθαι αὐτὸν πρὶν ἡ Πάνθεια ἀπῆλθεν.

Abradatas tinha o seu carro de quatro timões e puxado por outo cavalos esplendidamente ornado. Quando se preparava para vestir a sua couraça de linho, que era de uso no seu país, Panteia traz-lhe um elmo de ouro, braçais e largas braceletes para os pulsos, uma túnica de púrpura que caía em pregas até aos pés, além de um penacho cor de jacinto. Foram atavios preparados por ela às escondidas do marido, após tirar as medidas à sua armadura.

O marido, à vista disto, ficou admirado e perguntou a Panteia:

— Suponho, mulher, que não te terás desfeito das tuas jóias para me preparares esta armadura?

— Não, por Zeus — respondeu Panteia — pelo menos não da minha mais valiosa. Pois és tu, se porventura te mostrares aos outros tal como a mim me pareces, a minha maior jóia.

Ditas estas palavras, ela revestiu-o da armadura e, malgrado o esforço para as esconder, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto.

E quando Abradatas, que já antes era de admirável figura, envergou esta armadura, ganhou um aspecto sumamente formoso e distinto, como se o fosse por natureza. Tomando as rédeas das mãos do piloto assistente, estava já pronto para subir para o carro.

Nesse momento, Panteia ordenou a todos os presentes que se retirassem, e disse:

— Abradatas, se algum dia existiu mulher que estimasse mais o seu homem que a sua própria vida, julgo que sabes eu sou uma delas. Então, que necessidade há que eu te enuncie cada coisa uma a uma? Pois penso que os meus actos te dão provas maiores do que as palavras que agora te dirijo. Porém, sendo este o afecto que tenho para contigo, juro-te solenemente, pelo meu e pelo teu amor, que mais quero partilhar contigo, tu  um varão que granjeou valor, o trajo de terra a viver desonrada com um marido desonrado. Pois assim eu reputo ser a tua e a minha condição: dignos dos melhores actos. A Ciro estimo ser elevada a nossa dívida de gratidão, porque ao tornar-me prisioneira, escolhida para ele, não quis possuir-me nem como escrava nem como mulher livre mas com o nome manchado. Antes guardou-me para ti, tratando-me como à mulher de um irmão. E ainda, quando Araspas, o meu guarda, desertou, prometi-lhe que, se me deixasse enviar-te uma mensagem, tu te tornarias para com ele um varão muito mais excelente e mais digno de confiança do que Araspas.

Estas foram as suas palavras. Abradates, encantado com elas, pousou a mão sobre a cabeça da mulher e, elevando o olhar ao céu, orou:

— Grande Zeus, concede-me que eu me mostre para Panteia um marido digno e um digno amigo para Ciro, que nos honrou!

Dito isto, subiu para o carro pela portinhola da cabina. Depois de subir, o piloto assistente fechou a cabina. Panteia, não tendo outra forma de se despedir do marido, beijou o carro.

Já o carro estava em andamento e ela, sem disso se darem conta, o seguia, até que Abradatas se virou e, vendo-a, disse:

— Coragem, Panteia, e adeus. E agora vai-te embora!

Depois os seus eunucos e servas levaram-na e conduziram-na ao seu carro; aí a deitaram e velaram com o dossel. Os presentes, à vista do belo espectáculo tanto de Abradatas como do carro, não foram capazes de o contemplar antes de Panteia partir.

Para N. Holzberg[1], esta narrativa secundária, intercalada na principal, legitima a relação da Ciropedia com as novel proper (novelas propriamente ditas). Os principais elementos do romance grego de amor estão presentes: amor puro entre apaixonados totalmente ficcionais, a separação destes, a luta para se manterem fiéis e, por fim, o reencontro. Panteia sente necessidade de reafirmar ao marido que se mantivera fiel, tanto graças à elevação do seu amor que não admite questionamento quanto graças a Ciro, o adjuvante do casal.

Eu acrescentaria a dignidade e a nobreza da condição, do carácter e do gosto no cuidado com o aparato e o porte das armas e do guerreiro. A tragédia, como a caracterizou esteticamente Aristóteles na Poética, põe em acção personagens elevadas. Xenofonte era aristocrata, as personagens que na sua narrativa se destacam são da mesma condição. Neste sentido, Xenofonte pode ser entendido como um trágico. E próprios de personagens elevadas são uma linguagem elevada e sentimentos elevados: o cultivo da beleza que há na grandeza do porte e na magnificência da aparência, a dignidade (um certo sentido de carisma) emanada da presença; a fidelidade até à morte ao cônjuge e a aliados e amigos; a dilecção da morte honrada em detrimento da vida sem honra; a coragem e o valor guerreiros. Essa honra de Panteia haveria de ser provada, porquanto o seu juramento ao marido juramento não foi nem vão quanto à intenção nem destituído de sentido. Como tão pouco se limita a ornar o texto com um toque de solenidade, confirmando o propósito da personagem. Como se com um juramento se quisesse infundir no que é dito um penhor, uma garantia de credibilidade que de outro modo estaria seria inexistente. Ver-se-á que assim não é.

Outra coisa acrescentaria eu. Ou antes, assinalaria, pois é facilmente perceptível da narrativa: a profunda e singela humanidade das personagens, no beijo que Panteia imprime sobre o carro em que o marido seguia, compensatório daquele não pôde dar ao próprio. Substituíssemos esta mulher por outra, uma personagem por outra análoga e não estranharíamos. Com efeito, quão verosimilmente não veríamos esse gesto em outra? Quão singelamente humana não é uma tal cena? E singela porque decorre dessa pureza do afecto de dois esposos que, para tristeza de ambos, são forçados pelas circunstâncias a separar-se fisicamente e da vista.

Uma terceira coisa: a linguagem metafórica, própria da poesia, na prosa. A imagem do revestimento de terra representa a morte, evocando o estado de sepultamento. Xenofonte tê-la-á possivelmente tomado de uma ode de Píndaro, a Nemeia 11.16.

(continua)

[1] “Novels proper and the fringe” in G. Schmeling (org.), The Ancient Novel. An Introduction, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2003, pp. 11-28.

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