Não foi uma veia aberta que decretou a morte de Belchior. Em realidade, foram as veias abertas da América Latina e as veias do nosso povo, que se romperam diante de nossa indiferença com seus grandes artistas. Belchior, poeta cearense, muito além da questão do seu auto-exílio, fato é que só o redescobrimos na ausência, quando já não dava mais, quando tudo era uma frase no facebook ou uma citação no twitter.
Belchior, que transitou do particular ao universal, em suas letras cíclicas, atemporais, porque falam do homem, da vida, do mundo, das coisas e dos seres, sintetizou o nosso passar pela Terra que, exceto os penduricalhos, é sempre sonhar e lutar por um mundo melhor, em busca da realização dos desejos individuais, mas em sintonia fina com uma evolução coletiva, em uma simbiose dialética entre o ser humano e a sociedade em que ele convive.
Sendo a poesia a arte de condensar milhões de sentimentos em poucos versos, em suas letras, Belchior sintetizou os anseios de uma geração, a dos anos 70, que lutava contra a ditadura e empinava o nariz para o alto em busca de oxigênio de liberdade, que tomava porrada, que era torturada, que reagia frente à opressão e à censura.
Vítima da transformação do mundo, à medida que o país foi se democratizando, a partir da década de 80, Belchior, gradativamente foi relegado a uma situação de um produto obsoleto, um artista que todo mundo reconhecia, que todos o colocavam na estante dos maiores, mas que já não encontrava sintonia nas rádios. Ele mesmo disse, em “Velha Roupa Colorida”: “O que algum tempo era jovem e novo, hoje, é antigo…” Assim ficou Belchior.
As transformações do mundo oitentista, que por um lado revelaram bandas extraordinárias como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Titãs, dentre tantas outras, no campo da sociedade, em contrapartida, dava início a um processo de potencialização da idiotização musical, que se consolidou na década de 90, com axés e sertanejos com duplos sentidos em suas conotações sexuais.
“Eles venceram, e o sinal ficou fechado para Belchior”. Falar da vida, em ritmo de poesia e profundidade de filosofia era demais para uma juventude que não mais enxergava o inimigo da ditadura e começou a sofrer a pior forma de dominação: a do pensamento, da pasteurização, da massificação.
E nós não resistimos. Não fomos capazes de compreender o momento, nem de interceder. O povo o esqueceu, os antigos companheiros parecem também terem se unido. Como consequência, gênios como Belchior foram fenecendo diante de nossos olhos.
Diante da morte de Belchior, coloquemo-nos a pensar, então, quando morrerem outros grandes como Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, só para citar os mais notáveis.
É inevitável o questionamento: o que será da música brasileira quando acabar essa geração? Qual música ouviremos, ou melhor, nesses tempos, a frase mais adequada é, qual música CON(sumiremos)?
Se a música, literatura, cinema e artes em geral são representações de um povo, nós seremos explicados por grupos como “É o Tchan”; sertanejos com letras sexuais ou de uma construção rasteira, oca, superficial, que ainda são misturados com funk, pop, arrocha e eletrônica; por funks/pancadões com letras que beiram a imbecialidade? Qual seria a música do nosso povo?
Evidente que não dá para amarrar o tempo no poste e seria idiotice negar e respeitar as novas formas de manifestação cultural, no entanto, o que se verticaliza e nos assusta com a morte de Belchior é que ficou explícita a forma devastadora de como nós tratamos nossos grandes artistas.
Em troca de suas grandes letras e músicas, que compartilharam visões de mundo, que transformaram as pessoas por dentro, que criaram ângulos nos olhos para ver, encantar-se e questionar o mundo e seus sistemas, em troca de sua sensibilidade nós lhe presenteamos com o esquecimento, a rejeição, como um produto descartável.
Gênio que era, sempre via antes:
“Tudo poderia ter mudado, sim,
pelo trabalho que fizemos – tu e eu.
Mas o dinheiro é cruel
e um vento forte levou os amigos
para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos,
e nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não.”
(Não Leve Flores, Alucinação / 1976).
Belchior foi morto por mim, por você, por nós. Perdoe-nos Belchior, e justo com você, que no álbum “Alucinação” disse que só queria amar e mudar as coisas.
por Ricardo Flaitt, Jornalista e escritor | Texto em português do Brasil
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