O que têm em comum Spike Lee e Don Cheadle, para além do facto de um boicotar os Óscares e o outro fazer tenção de marcar presença? Talvez a oportunidade de nos permitir juntar dois filmes que ambos realizam, movidos por uma forte componente musical e uma intervenção significativa de… armas.
São eles Chi-Raq, de Spike, sobre as guerras de gangues em Chicago, apresentado fora de competição, e Miles Ahead, na Berlinale Special Gala, abordando um período turbulento na vida do trompetista Miles Davis.
Spike tem aqui um dos seus melhores trabalhos, num misto de coragem acusatória e performance artística ao adaptar uma peça de Aristófanes, com 2,426 anos, para espelhar a realidade violenta de hoje que se vive da zona sul de Chicago, onde morreram mais cidadãos que soldados na guerra do Iraque, conforme informa uma legenda logo no início do filme.
Daí a opção por Chi-Raq, o nome porque é conhecida essa zona da cidade, um misto de Chicago e Iraque, devido às sucessivas guerras de gangues rivais, que o filme aproveita para dividir entre os spartans e os trojans, ou seja, a reprodução da guerra do Peloponeso entre a Grécia e Esparta.
Sobretudo após a morte acidental de mais uma criança alvo de balas perdidas, no caso a filha de Irene (Jennifer Hudson).
A peça em questão é Lysistrata, sobre uma mulher que consegue persuadir as outras a recusar privilégios sexuais aos parceiros por forma a que estes viessem a negociar a paz entre gregos e espartanos, sendo que a réplica das mulheres do filme de Spike era No Peace, no Pussy!…
O tom é de uma muito eficaz ópera rap, com Samuel Jackson investido no papel do MC Dolomed, servido por diálogos em rima muito bem trabalhados e sem perder o tom gangsta, num guião que contou com a colaboração de Kevin Wilmott.
Pelo meio, temos uma agenda de temas quentes, como o (des)controlo de armas nos EUA e o domínio impune do National Rifle Association denunciado por um discurso inflamado do padre local, interpretado com garra por John Cusack.
Lá para a segunda parte, o rapper Chi-Raq, líder dos Sparta (Nick Cannon) percebe o sentido da ameaça cumprida da namorada Lysistrata (Teyonah Parris), o mesmo sucedendo ao rival líder dos Trojan, Cyclops (Wesley Snipes).
Do rap para o jazz no filme Miles Ahead, sobre um período particular na vida e carreira do trompetista Miles Davis, Don Cheadle assume um trabalho de raiz não só com o protagonismo, como ainda a escrita do guião e a realização do filme. A composição assombra pela forma como assume o momento alucinado de Miles, durante os cinco anos em que não editou um novo disco, consumido pela droga e até envolvido em algumas acções violentas.
Isso permite-lhe ousadias que ultrapassam o mero filme biográfico, o que até nem fica mal ao mestre do improviso, aquele que rejeitou o termo jazz, optando antes por ‘música social’.
É neste turbilhão que aparece Ewan McGregor, apresentando-se como Dave Braden, um suposto jornalista impetuoso da Rolling Stone à procura de uma história e não aceitando um ‘não’ como resposta.
Teremos ainda um evento ficcionado de uma bobine (imaginária) com material novo e que provoca a cobiça do produtor discográfico Harper Hamilton (Michael Stuhlbarg) e do seu guarda costas que nos oferece algumas sequências de ação à maneira antiga, leia-se anos 70.
No meio de um certo caos controlado, que mistura factos e ficção, Cheadle concentra-se mais em dar-nos pistas da forma turbulenta como ele encarava a sua música do que propriamente o rigor imperativo.
O que nos leva no final para um concerto imaginário com um regressado Miles, numa sessão onde vemos também Herbie Hancock, Whayne Shorter, bem como performers ainda mais recentes como Esperanza Spalding e Cary Clark Jr., enquanto os créditos finais se iniciam com uma data 25 de Maio de 1926, data de nascimento de Miles Davis, mas com o espaço da morte em aberto, como que para indicar que o seu espírito continua vivo.
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