Não seria a primeira nem a última vez. Ficou célebre a chegada de George W. Bush, em Maio de 2003, num Viking militar, fardado rigorosamente como um autêntico top gun, ao porta-aviões Lincoln. Bush iria disputar as eleições de 2004 contra o supermedalhado John Kerry (actual Secretário de Estado) e Karl Rove, o seu Spin Doctor, quis dar-lhe o que ele não tinha, ou seja, uma aura militar muito útil para efeitos eleitorais no pós-Torres Gémeas.
Ficou famosa esta operação! Tão famosa que até passou a ser estudada nas escolas de comunicação dos Estados Unidos. Mas esta, a ser verdade, seria muito mais sofisticada e funcionaria – mais do que o apoio directo recorrentemente manifestado por Obama – num registo subliminar, como se Obama, no Air Force One, estivesse já a antecipar ou mesmo a selar oficialmente o que está para acontecer em Novembro, nas eleições presidenciais americanas.
Bill, let’s go!
À partida, o episódio não parece muito verosímil. Obama impaciente, à porta do avião, por uns minutos de espera por Bill Clinton? Exibindo algum nervosismo (ou mesmo irritação) perante televisões de todo o mundo? E numa cena de tipo familiar, entre dois amigos comuns? Em mangas de camisa e gravata desapertada a gritar, no cimo das escadas do Air Force One, “Bill, let’s go, I gotta get home!”?
Imaginemos, pois, que se trata de spinning e façamos um rápido exercício.
Bill Clinton, que foi um dos oradores no funeral de Shimon Peres, foi Presidente dos Estados Unidos nos anos ’90, em dois mandatos. Mas é marido de Hillary, que se encontra em campanha eleitoral para a Presidência dos Estados Unidos, e já a poucos dias das eleições. Obama está de saída (em Novembro/Janeiro), sendo natural que já comece a dizer frequentemente (para Michelle): “I gotta get home!”; “estou farto disto!”; “quero ir descansar de oito anos que me deixaram os cabelos completamente brancos!”. Bill regressava aos USA no Air Force One, com o Presidente.
Capitalizar a imagem de Obama
A cena é insólita, porque exibe como normais dois homens que, pelas suas posições e funções, não são normais. Mesmo que – como se diz – seja admissível que o Presidente dos USA possa esperar por alguém que também já foi Presidente (como diz o “The Telegraph”, de 02.10: “keeping an American president waiting isn’t usually the done thing – unless, of course, you’re a former US president”), não seria normal que a isso fosse dada uma publicidade mundial, a não ser com manifesta intencionalidade. E muito menos nos termos em que isso viria a acontecer.
Barack Obama, com este gesto, aproxima-se subtilmente ainda mais da candidata democrata e reforça o nome Clinton na agenda mundial e, claro, nos Estados Unidos – a cena tornou-se viral. Bill Clinton continua a ser alguém com um estatuto muito especial. Foi um excelente Presidente durante oito anos e é marido da candidata democrata apoiada por Barack Obama. Aqui surge também como próximo do Presidente.
A ligação à candidata democrata é aqui selada num registo muito humano, quase familiar ou íntimo, capitalizando-se assim, para efeitos eleitorais, a excelente imagem política e humana de Barack Obama: humanidade, frontalidade, simplicidade, simpatia e cumplicidade com quem o vê e ouve. Tudo isto, sim, além dos excelentes resultados obtidos em matéria económica e financeira (resposta eficaz à crise de 2008) e em políticas sociais (Obamacare) e de emprego (cerca de 15 milhões empregos recuperados).
Uma antecipação do cenário pós-eleitoral
O Air Force One é uma segunda Casa Branca. Clinton entra nele como segunda figura. Obama tem pressa de regressar a casa (home) e por isso diz a Clinton que se apresse – “Bill, let’s go!”.
Alude-se aqui, na fórmula linguística utilizada, subtilmente, a um regresso de Obama à vida privada (regressar a casa) e à sua substituição por Hillary Clinton, acompanhada do passageiro Bill. Com efeito, se Hillary Clinton ganhar as presidenciais, como se prevê, o seu marido entrará na Casa Branca em segundo plano (desta vez certamente sem se atrasar), como acontece aqui. A figura de Bill aparece assim a antecipar e até a selar esse futuro próximo (que se deseja).
Mas não se vê um Presidente ligeiramente irritado? É minha convicção que o (aparente, creio eu) nervosismo de Obama serve para evitar qualquer tentativa de interpretação da cena em sentido instrumental (com efeito, todos os media relatam o episódio dando conta de uma ligeira irritação, ou pelo menos impaciência, do Presidente, mas também todos acentuam a ideia de dois homens comuns, próximos e simples).
Um forte simbolismo
Perguntar-se-á: que impressão provocou a cena no espectador? Eu achei-a espontaneamente divertida e agradável aos olhos do cidadão comum, dando conta de duas personalidades a quem o poder não fez perder as características mais humanas da simplicidade e da normalidade comportamental, em qualquer circunstância. Isto, reforçando a imagem de ambos, reforça também, de forma indirecta, simbolicamente a de Hillary. O episódio tem, de facto, um forte simbolismo e densifica a narrativa global de Hillary Clinton, reforçando-lhe a retaguarda, a solidez do contexto humano, político e institucional em que ela se move. Está bem acompanhada, a candidata!
Muitos americanos hão-de rever-se neste gesto e nesta proximidade de dois grandes Presidentes, tendo um deles o nome Clinton. Como se esta viagem de avião prefigurasse o momento da próxima “viagem” presidencial, com Obama a regressar a casa e Hillary já ao comando da White House/Air Force One, permanecendo como segundo “passageiro” esse mesmo Clinton que partiu, com Obama, de Israel em direcção aos Estados Unidos.
Não sei se houve, de facto, spinning. Mas, como disse Giordano Bruno, em “De gli heroici furori” (Paris, 1582), “se non è vero, è molto ben trovato”!