Existe uma centelha de cura no registro de lembranças dolorosas, que podem – e devem – ser narradas de forma lúdica, não importa em que plataforma: literatura, cinema, game. Os pais do pequeno Joel Green, que morreu em 2014 com cinco anos de vida e três de luta contra o câncer, decidiram “memorializar” o filho em um game do tipo empático, “That Dragon, Cancer”.
Toda perda, no pico da dor, vai para o automático da vida. Só depois, para os que se permitem ou têm coragem (porque o medo é tanto o companheiro quanto o arqui-inimigo na jornada), o automático pode evoluir para uma elaboração alentadora e criativa do luto. Eis como nasceu That Dragon, Cancer.
Lançado em 2016, o game é catártico, se propõe a liberar emoções difíceis e mobilizar forças de superação. As cenas transcorrem principalmente em um hospital, durante tratamentos de radioterapia. E a morte não é um episódio banal que pode ser apagado com uma “ressurreição” ao alcance de um clique. Ao contrário, ela é crucial para compreender as regras e seguir no jogo.
O game de Joel tem alguma diversão, mas é implicitamente triste, traz lágrimas aos olhos, desconforto para a alma. Exatamente como a vida real. Que não conseguimos, rigorosamente, largar antes do final. Tampouco esse game.
Na construção do protagonista, o pai do menino – Ryan, desenvolvedor do game — procurou tornar o filho cada vez mais “amado” pelo público, conforme declarou para a imprensa, por isso refez e retirou cenas. Exatamente como fazemos na vida real, quando buscamos as lembranças mais agradáveis daqueles que amamos e perdemos para a morte.
O final é feliz na medida em que os pais são cristãos fervorosos e demonstram a fé em uma vida após a morte ao longo do enredo. Mas a religiosidade não contraindica o game para descrentes ou ateus. Ela é menor do que os enigmas que o game propõe, existenciais.
Por que estamos aqui, nesse mundo? Por que o destino pode se mostrar às vezes tão trágico? De que serve o sofrimento na vida? Por que Deus, se existe, não se importa com o nosso sofrimento?
Por que registrar e expor a luta do meu filho contra a morte? Essa última questão é exclusiva do pai do menino, que relutou antes de decidir finalmente criar e lançar o game. Em colaboração com toda a família: a mulher e os outros filhos, que dublam as falas.
O fato de parte das vendas serem destinadas a fundos de caridade que trabalham com doentes de câncer não ajudou a aliviar a questão ética ou estética que antecedeu a obra.
Por outro lado, toda história não tem um pouco de escândalo e usurpação? Escândalo porque revela intimidades em maior ou menor grau. Usurpação porque envolve, de certo modo, a apropriação das memórias do outro na reconstrução na memória da própria dor.
Joel, a criança, diria sim para o game? O que se sabe é que Joel ganhou um tipo de imortalidade quando transpôs o limiar da realidade para a ficção.
Nota: A autora escreve em português do Brasil
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