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Domingo, Dezembro 22, 2024

“Bird Box”, uma fábula para nosso tempo

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

O surpreendente sucesso do filme da Netflix, que superou 45 milhões de espectadores.

O que leva no mínimo 45 milhões de pessoas a assistir a um filme? É um número imenso, e pode aumentar ainda mais se o filme for assistido por um casal, sendo multiplicado por dois – serão 90 milhões; se a platéia tiver, além do casal, outra pessoa, sobe para 135 milhões – e assim vai.

A pergunta é provocada pelo enorme sucesso de “Bird Box”, a sensação desta passagem de 2018 para 2019 na rede de streaming Netflix, que se tornou a principal provedora mundial de filmes e séries de televisão. 

“Bird Box” é de longe seu maior êxito desde que Netflix surgiu, em 1997. E, pelo fato de distribuir os filmes via fluxo de dados na internet – que barateia, facilita e multiplica o acesso aos filmes – a melhor avaliação de seu sucesso é a estimativa do número de pessoas que alcança, e não as avaliações convencionais que levam em conta o desempenho da bilheteria.

De toda forma, o sucesso de “Bird Box” é notável. O dado divulgado pela Netflix se refere apenas à primeira semana desde seu lançamento mundial em 21 de dezembro de 2018. Uma semana depois, a Netflix divulgou o número de views, que teria alcançado exatos 45.037.125 de acessos.

É o retrato de um sucesso instantâneo. Mas, voltando à pergunta inicial, o que leva tanta gente à frente da tevê para assistir a um filme?

Sem o charme de clássicos da ficção científica, como “2001 – Uma Odisséia no Espaço” (1968), ou “Blade Runner – O Caçador de Andróides” (1982), “Bird Box” é uma fábula de nosso tempo. O filme é bem feito, com excelentes atores (entre eles os já veteranos Sandra Bullock e John Malkovich) e direção, da dinamarquesa Susanne Bier. Tem os ingredientes necessários que descrevem um futuro aterrador, mas um final otimista – que foi escolhido por Susanne Bier – ela mudou o desfecho original do romance no qual foi baseado, de Josh Malerman (de 2014, com o mesmo título); ele descreve a Terra depois de uma crise apocalíptica, ameaçada por seres que ao serem olhados induzem a pessoa ao suicídio. Neste contexto, Malorie Hayes (protagonizada por Sandra Bullock) tenta proteger seus filhos pequenos (apelidados de Garoto e Garota) e os conduz a um lugar seguro, numa turbulenta viagem de barco através de um rio – os três de olhos vendados para não correr o risco de enxergar as sedutoras criaturas que podem levá-los à morte.

Tornou-se um lugar comum a realização de filmes que acentuam aquilo que, em nosso tempo, é visto por todos como ameaça. Filmes que descrevem mundos desorganizados pela ação de forças que as pessoas não controlam nem compreendem, mundos em que a presença de desconhecidos (sejam pessoas de círculos diferentes de cada um, sejam migrantes) é uma ameaça. Mundos em que a única lei é a do mais forte.

“Bird Box” se enquadra nestas condições, e pode ombrear aqueles clássicos da ficção científica. Descreve pessoas obrigadas a ficar em casa, fechadas, protegidas, para não olhar para os seres que ameaçam suas vidas; quando saem, devem usar vendas nos olhos e se mover às cegas, mesmo dirigindo automóveis.

É o caso de Malorie, que empreende uma viagem temerária, literalmente às cegas, para salvar os filhos. Aqui o simbolismo se reforça: uma mulher que não pode enxergar, guiando duas crianças igualmente vendadas, viajando em um barco num rio turbulento – outra metáfora poderosa, a de um caminho que se move por si, entre perigos e descontroles.

“Bird Box” parece nos dizer que o mundo é levado às cegas, com a ameaça de destruição presente em qualquer desconhecido e nas forças “ocultas” que o dominam e nos estranhos que cruzam nosso caminho. Mas com o final otimista escolhido pela diretora – a viagem leva Malorie e as crianças a um mundo seguro, pacífico e solidário (outra metáfora que deve ser levada em conta: chegam a uma escola para cegos).

Deste ponto de vista, “Bird Box” é uma fábula para o mundo de hoje, dominado por forças incompreendidas, que se impõem sobre as pessoas e são estranhas a elas, mundo dominado pela força do dinheiro que coloca todos contra todos. Mas que pode ser superado por outro, mais humano – depois de uma longa e tormentosa travessia cheia de acidentes e imprevistos. Susanne Bier, que já dirigiu filmes como “Em um mundo melhor” (2010), explicou sua decisão de mudar o final que, no original, era igualmente ameaçador; foi, disse, para que as pessoas pudessem ter um desfecho mais esperançoso.


Texto em português do Brasil


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