Tenho referido várias vezes, inclusive no Jornal Tornado, que o Estado Novo se consolidou em torno da formação de um bloco no poder na origem heterogéneo, que abrangeu também personalidades republicanas e liberais.
Tenho referido várias vezes, inclusive no Jornal Tornado de O fascismo irá regressar a Portugal? (19-12-2018) e no de Desenterrar Salazar? (25-9-2019), que o Estado Novo se consolidou em torno da formação de um bloco no poder na origem heterogéneo, que abrangeu também personalidades republicanas e liberais. De modo geral os mecanismos políticos, administrativos, económicos e financeiros dessa consolidação estão pouco estudados.
Uma das excepções é Bissaya Barreto: Ordem e Progresso que corresponde a uma tese de mestrado de Jorge Pais de Sousa de que foi orientador Luís Reis Torgal, defendida em 1999 e seguidamente publicada, a qual se esgotou, tendo o seu autor, entretanto doutorado, resolvido elaborar uma edição actualizada, publicada pelas Edições Almedina em 2018, iniciativa custeada na íntegra pela Fundação Bissaya Barreto.
Pessoalmente, tinha desde há muito tempo de Bissaia Barreto, aliás Fernando Baeta Bissaia Barreto Rosa (1886 – 1974) a ideia de que havia estado envolvido na proclamação da República (julgo mesmo que teria participado no acto realizado na varanda da Câmara Municipal de Lisboa), que era amigo pessoal de Salazar, que aderira publicamente à União Nacional aquando da criação desta – e isto a partir de uma referência nos Anais da Revolução Nacional, Vol lII 1930-1936, onde se fala do esboço de formação, em 1931, de uma Aliança Republicano-Socialista, e se regista em Janeiro do ano seguinte:
Mas em Coimbra, arrastando consigo os numerosos partidários que tem no distrito, o doutor Bissaia Barreto adere à União Nacional. A ‘frente única’ dos partidos abre brecha, assim.”
E que estava presente quando Salazar teve de ser operado em 1968 a seguir à queda da cadeira.
O trabalho de Jorge Pais de Sousa, para além de referir o enquadramento familiar do biografado, nascido em Castanheira de Pera, começa por desenvolver a greve académica de 1907 na Universidade de Coimbra e a participação de Bissaia Barreto, inscrito simultaneamente em Filosofia, Medicina e Matemática, na liderança do movimento que, já sintonizado com alguns professores, luta contra o autoritarismo e pela abertura da Universidade a novas ideias, pela reintegração de sete estudantes excluídos, com os quais a academia se solidariza tendo 160 estudantes intransigentes, entre os quais se encontravam muitos dos melhores alunos, como Bissaia Barreto e Aureliano de Mira Fernandes, e muitos nomes que se viriam a destacar na vida política, académica e cultural, recusado inscrever-se para prestar provas de exame. Instaurada enquanto decorria este processo a ditadura de João Franco as actuações deste vieram agravar a situação, que só foi ultrapassada pela intervenção do Reitor junto de D. Carlos. Sobreveio o Regicídio e os estudantes mais avançados continuaram a recusar a Monarquia de D. Manuel II. Entre outros, Bissaia Barreto (“não conheço o Rei …”) e Mira Fernandes que se viria a licenciar em Matemática com 20 valores recusaram-se a receber galardões académicos das mãos deste.
Este estudante intransigente é também um republicano convicto que vem a integrar o Centro Académico Republicano de Coimbra (em 1908 forma-se também um Centro Académico Monárquico), a participar no Partido Republicano Português, aqui sem intervenções conhecidas, e se filia na Maçonaria (irmão Saint Just) e na Carbonária de Coimbra. Derrubada a Monarquia é eleito deputado à Constituinte, alinhando com o Partido Republicano Evolucionista de António José de Almeida, que, sem sucesso, defende uma câmara alta de representação de interesses. Sidónio Pais, que se situava na área da União Republicana de Brito Camacho na altura – Dezembro de 1917 – em que deu o seu golpe, acolhe na República Nova uma solução deste tipo embora falhe a tentativa de atrair António José de Almeida para a área do poder (como se refere em Sidónio Pais, Ídolo e Mártir da República, de Rocha Martins).
Em 1919 quatro professores da Universidade de Coimbra (Carneiro Pacheco, Fezas Vital, Magalhães-Colaço e Oliveira Salazar) são objecto de um inquérito a eventuais convicções e actuações pro-monárquicas. Jorge Pais de Sousa situa no posicionamento de Bissaia Barreto (que depois das eleições de 1911 se tinha oposto a uma proposta de encerramento da Universidade de Coimbra formulada em sede parlamentar) nessa altura o início da grande proximidade pessoal que existiu durante cinquenta anos entre ele e Salazar.
No entanto o itinerário politico de Bissaia Barreto, que se licenciara em 1911, se doutorara em 1915, e a partir daí viria a percorrer o cursus honorum até professor catedrático da Universidade de Coimbra, jubilando-se em 1956, é mais complexo, e o autor refere que na reorganização da direita republicana a que se assistiu depois do fim do Sidonismo, integrou a Comissão Executiva da União Liberal Republicana de Cunha Leal, e aceitou, em 1927, já sob a Ditadura Militar, a presidência da Junta Geral do Distrito de Coimbra, a que sucederia, com o Código Administrativo de 1936, a da Junta Provincial da Beira Litoral e em 1959, com nova reorganização do território, a da Junta Distrital de Coimbra. Segundo Jorge Pais de Sousa o vasto trabalho de Bissaia Barreto, nestas funções de presidente, no domínio da Assistência Pública, definida em termos amplos e que abrangia a Saúde (em geral, mas especialmente a luta anti-tuberculosa, a saúde mental e a protecção às grávidas), a Formação Profissional, a Educação Infantil, dá de algum modo sequência, numa base regional, ao programa que havia sido o dos republicanos evolucionistas. De registar também a formação em enfermagem e em serviço social.
Não resisto, numa altura em que muita gente de Coimbra luta pela recuperação do papel dos Covões, fundado por Bissaia Barreto, a transcrever:
Hospitais Civis que só existiam em Lisboa e no Porto, e que correm hoje o sério risco de desaparecerem ou se diluírem, mas que, em 1979, foram um forte contributo que resultou da acção política de Bissaya Barreto para a criação do Serviço Nacional de Saúde em Portugal. Vieram fazer concorrência, na altura, ao monopólio assistencial dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) expandir a cobertura e a qualidade dos cuidados de saúde prestados às populações de Coimbra e da Região Centro.
Jorge Pais de Sousa sugere que a acção de Bissaia Barreto no domínio social, embora de modo geral apoiada por Salazar, terá sido em parte articulada com os seus ex-correligionários evolucionistas de Coimbra – que se movimentaram por exemplo em conjunto para pedir que fosse dado o nome de António José de Almeida a uma rua de Coimbra – e que haveria interesse em realizar um “estudo monográfico” sobre o preenchimento de cargos por republicanos na região. Tanto Mário Pais de Sousa como Albino dos Reis, que foram sucessivamente nomeados Governadores Civis de Coimbra e Ministros do Interior de Salazar, haviam sido, como Bissaia Barreto, dirigentes da União Liberal Republicana de Cunha Leal, mas é a outros nomes e a cargos de menor relevo que, julgo, se aplica a recomendação de Jorge Pais de Sousa.
Em apoio desta leitura, o autor refere que a PIDE organizou três processos sobre Bissaia Barreto, um dos quais sintomaticamente intitulado de “Partido do Centro”, e que aquele professor foi sempre hostilizado dentro da Universidade de Coimbra pelos sectores monárquicos e ex-integralistas (e ainda mais quando lutou pelos Hospitais Civis…). No meio de tudo isto este membro da Comissão Central da União Nacional (cujos arquivos o autor se queixa de nunca terem sido tratados pelo ANTT) entre a criação desta e 1969 nunca terá tido sequer ficha de inscrição na agremiação.
Em que pontos é que, segundo o livro evidencia, se verifica a existência de sintonia política entre Bissaia Barreto e o regime? Documentados estão o apreço pela garantia de estabilidade política, na versão de “Salazar – homem providencial”, a crença na possibilidade de conciliação entre o corporativismo de Manoilescu e o programa social dos republicanos evolucionistas, e o anti-comunismo.
Mas há nuances, geridas numa base pessoal: Bissaia Barreto pronuncia-se contra Hitler e, segundo Jorge Pais de Sousa com o conhecimento de Salazar, estabelece contactos políticos com os americanos e os ingleses (o livro contém uma foto de uma visita, em 1940, de funcionários diplomáticos britânicos – incluindo o chefe do Intelligence Service em Portugal – ao Sanatório dos Covões), ingleses que, como se sabe, teriam também algumas esperanças no antigo embaixador em Londres Armindo Monteiro; mantém uma amizade pessoal com Henrique Galvão, que aliás colabora num filme de propaganda sobre a Obra de Assistência na Beira Litoral, e disse-se que terá facilitado a evasão de Galvão do hospital onde estava internado sob prisão; dá a mão ao médico comunista Otílio de Figueiredo, que tinha sido seu aluno, incentivando-o a abrir uma clínica em Vila Real onde vai ele próprio realizar cirurgias, e mais tarde ao seu filho Eurico de Figueiredo, dirigente estudantil e então também militante comunista.
Um leitor do post que serviu de base a este artigo publicou, em resposta, o seu próprio testemunho de como, após a sua participação na “crise” de 1969, foi aconselhado a recorrer a Bissaia Barreto, que não conhecia, como forma de ultrapassar uma informação política negativa que lhe impedia o acesso a um modestíssimo e precário emprego público, e de como é que essa iniciativa foi bem acolhida pelo intransigente de 1907 e de imediato deu frutos.
Após a II Guerra Mundial envolveu-se também, a título pessoal, em iniciativas empresariais, como a criação dos Estaleiros Navais da Figueira da Foz, aliás outros estaleiros foram criados na altura por personalidades com boas ligações no regime. Contudo, não na mira de maior afluência pessoal ou familiar. “Celibatário”, como refere o autor, os seus bens vieram a reverter, quando faleceu, para a Fundação Bissaya Barreto, por si instituída em 1958.
Julgo que se pode dizer a tese de mestrado de Jorge Pais de Sousa dá também algumas pistas sobre a intervenção pessoal de Salazar no seu território político de origem.
Esta intervenção não se desenvolve apenas através de Bissaia Barreto. Jorge Pais de Sousa que aliás não se debruça em pormenor sobre a década de 1960 e sobre os anos do “Marcelismo” salvo para referir o carácter essencialmente memorialístico da produção do biografado, poderia também referir que nestes anos ao lado do Presidente praticamente vitalício da Junta Distrital de Coimbra esteve sempre como Governador Civil José Horário de Moura, que o ajudou a erguer e a administrar a Fundação.
Doutorado em Engenharia Civil na Suíça, activista católico, fundador da associação de patrões católicos UCIDT (hoje ACEGE) assentou a sua acção na realização de reuniões regulares a nível de distrito e de concelho, e, disse-o Bissaia Barreto:
Pela primeira vez se estabeleceu a técnica de o Governador Civil ir contactar pessoalmente com as Câmaras Municipais, com as Juntas de Freguesia, com os habitantes dos mais longínquos lugarejos”
Nascido em 1908, era de uma geração com que Salazar nem sempre tinha tido ocasião de se relacionar pessoalmente, mas que o tinha lido, tinha adoptado as suas ideias, e a quem podia escrever cartas pessoais. No plano social o Chefe não apresentava ele próprio grandes programas, mas, onde aparecia gente que queria fazer, em regra deixava. É difícil termos hoje uma ideia de como tudo isto funcionava.
Jorge Pais de Sousa faleceu em 2019 aos 59 anos. Conto tratar a publicação que fez da sua tese de doutoramento, com o título O Fascismo Catedrático de Salazar, em outro artigo.
Nos anos 1930, em fontes que consultei, escrevia-se “Bissaia” e “Marcelo”- Mantenho essa forma.
Procuro ainda referência que documente esta menção.
Jorge Pais de Sousa transcreve, de um texto do biografado publicado em 1961:
Tomei parte activa na greve de 1907, movimento explosivo de reacção contra a senilidade do ensino universitário, fortemente castigado nas orações de sapiência dos professores Sobral Cid, Sidónio Pais e Bernardino Machado. Respeitei durante a greve todos os compromissos tomados, mantive uma atitude de perfeita coerência”.
Mira Fernandes, mais tarde professor do Instituto Superior Técnico e do Instituto Superior do Comércio / Instituto Superior de Ciências Económicas Financeiras. Num artigo de Augusto José Fitas sobre este professor fala-se de 107 intransigentes. Foi também deputado à Assembleia Constituinte em 1911. Não existem, que eu saiba, referências a intervenção política posterior. Terá, ao que ouvi dizer a um seu então assistente, recusado a assinatura a um abaixo-assinado que no pós II Guerra Mundial pedia eleições livres dizendo “Eu não me rebaixo a pedir aquilo a que tenho direito”.
O autor aliás vê na crise de 1907 um padrão das que em épocas futuras viriam a abalar a Universidade de Coimbra.
Num texto que encontrei na Internet afirma-se que terá sido médico da mãe de Salazar, mas tal não é referido por Jorge Pais de Sousa.
Localizei na Internet um trabalho de Alcina Martins e Maria Rosa Tomé “Bissaya Barreto e a Política Assistencial da Junta da Província da Beira Litoral” com a menção CPIHTS – Centro Português de Investigação em História Económica e Social, que remete expressamente para a tese de mestrado de Jorge Pais de Sousa (1999) e fornece descrições detalhadas da parcimónia dos meios com que a Junta geria os estabelecimentos por si criados, com uma supervisão pessoal muito estreita do seu Presidente.
Governo Civil de Coimbra, Um ano de trabalho em comum pelo bem comum, Coimbra, 1961.
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