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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Bolívia: Bolsonaro acusa o golpe

Entre tantos temas internacionais importantes nas últimas semanas, uma decisão da justiça boliviana chamou a atenção de Jair Bolsonaro: a sentença que condenou a ex-Presidenta Jeanine Añez por atuação ilegal na irrupção violenta da ordem constitucional de 2019.

A decisão do Tribunal Primeiro Anticorrupção de La Paz responsabilizou, no último dia 10 de junho, além da ex-senadora, o ex-comandante das forças armadas Williams Kalimar e o ex-comandante de polícia Yuri Calderón, atribuindo a cada um a pena de 10 anos de prisão. Também foram condenados outros integrantes das Forças Armadas e policiais por atuação direta no violento golpe cívico, político e policial que impediu a continuidade do governo de Evo Morales e do Movimento ao Socialismo (MAS) após vitória nas eleições em primeiro turno.

Bolsonaro acusou o golpe ao criticar a sentença. Comparou a decisão ao que considera um arbítrio da justiça brasileira pela condenação de apoiadores e parlamentares de extrema direita que agiram contra a independência dos poderes e contra o Estado Democrático de Direito.

Podemos até concordar com Jair Bolsonaro. Não só é possível, como recomendável comparar Bolívia e Brasil, tanto pela independência judicial e capacidade soberana de censurar atos antidemocráticos como pela similitude quanto aos métodos e o projeto de desestabilização antidemocrática de certos setores que premeditam contra a vontade popular.

Durante o juízo oral, Jeanine Añez queixou-se da falta de apoio de ex aliados e da ausência de testemunhas de defesa que poderiam esclarecer o que realmente aconteceu. A ex-mandatária alegou ter sido “convidada” a ocupar a presidência, tendo sido conduzida no helicóptero presidencial e recebida com honras de chefe de Estado perante a Assembleia Legislativa Plurinacional, momento em que se autoproclamou Presidenta em uma sessão absolutamente irregular, sem quórum, com a ausência de legisladores do partido majoritário MAS e antes da renúncia formal de Evo Morales e do vice-Presidente Álvaro García Linera.

Por certo, sabe-se que, além dos partidos da oposição, também empresários, setores da igreja católica, grupos militares e policiais premeditaram a investidura ilegal nos dias que se seguiram à irrupção violenta deflagrada por um relatório da OEA questionando o resultado eleitoral em primeiro turno. O fato insólito e decisivo da Missão de Observação Eleitoral da OEA é estudado como um exemplo de violação da isenção por parte da OEA, ferindo gravemente o princípio de não intervenção em assuntos internos.

Desde então, e com a renúncia e o exílio forçado de Evo Morales e de outros integrantes do MAS, os episódios de violência e repressão vitimaram 37 vidas, mais de 500 feridos e produziram o encarceramento político de aproximadamente 1500 pessoas, crimes que serão avaliados em processos judiciais pendentes de julgamento.

Dos incidentes odiosos ocorridos no frustrado processo eleitoral de 2019, muitos podem ser recordados como uma espécie de aviso aos navegantes no Brasil: de comitês cívicos paramilitares, incendiando casas e juntas eleitorais, às “motociatas” de opositores armados intimidando mulheres indígenas pelas ruas de La Paz.

Os métodos de terror e violência que ocorreram na Bolívia apontam para a materialização das ameaças bolsonaristas de corte fascista e suas graves consequências caso a vontade das urnas não seja respeitada em outubro deste ano.

Além disso, há outras pontes entre o Brasil de Bolsonaro e a Bolívia de Añez no que se refere à defesa mútua de investiduras farsescas. Informações da diplomacia boliviana dão conta de que o então embaixador brasileiro em La Paz, Otavio Côrtes, fez parte das tratativas da sucessão inconstitucional, participando de reuniões com embaixadores de outros países e com os líderes da oposição Carlos Mesa e Fernando Camacho.

Lembremos que, desde o primeiro momento, o Brasil reconheceu a legitimidade do mandato forjado, alinhando-se aos Estados Unidos de Donald Trump, à Colômbia de Iván Duque e à Argentina de Maurício Macri, além da própria OEA secretariada por Luis Almagro.

Com a restauração da legalidade e da legitimidade dos poderes públicos, o Estado boliviano tem a obrigação de investigar os fatos e puni-los, sendo o poder judiciário o único habilitado a fazê-lo, garantindo um processo de transição para o restabelecimento da memória, da verdade e da justiça orientado sob os princípios de autodeterminação, do devido processo legal e da não ingerência nos assuntos internos.

Em tempos de ameaças híbridas que desestabilizam toda a América Latina, a decisão da justiça boliviana vai além do próprio país, tornando-se um referencial e uma advertência para as novas tentativas de golpe que se valem de ritos farsescos com aparência de legalidade.


por Carol Proner, Doutora em Direito, professora da UFRJ, diretora do Instituo Joaquín Herrera Flores – IJHF  |   Texto em português do Brasil

Fonte: Brasil247

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