Este artigo, publicado na edição de junho de 2006 da revista Princípios, explica bem as causas do golpe atual na Bolívia. Evo Morales acabara de tomar posse como presidente, o primeiro de origem indígena. A riqueza de detalhes do autor permite uma visão histórica da quantidade de golpes naquele país, todos com as características do atual.
por Eugênio Resende de Carvalho
A questão boliviana é um drama que afeta a toda a América Latina, extrapola fronteiras e governos nacionais; e diz respeito ao direito de cada povo a sua autodeterminação e usufruto pleno de suas riquezas
Embora não seja um caso único na história universal, a trágica história da nação boliviana poderia ser resumida, desde as suas origens coloniais, à história de um país vítima secular da ambição e espoliação externa de seus extraordinários recursos naturais, mediante o uso de seus próprios recursos humanos, ou seja, com a exploração brutal da mão-de-obra local, de origem majoritariamente indígena. Uma história de uma sociedade formada por uma admirável riqueza e diversidade étnica, herdeira de duas culturas milenárias – os tiahuanacotas (aymarás) e os incas (quechuas) – que contraditoriamente pouco usufruíram, em seu próprio benefício e interesse, dos frutos da espantosa riqueza mineral incrustada no território sobre o qual se desenvolveu.
Trata-se de uma longa história da desmedida cobiça externa ora pela prata, ora por estanho, nitrato, petróleo e gás natural, que levou a um contínuo processo de pilhagem dos recursos naturais da nação, provocando, desde a independência boliviana em 1825, a deflagração de inúmeras guerras e disputas territoriais com países vizinhos. Tais conflitos foram incentivados quase sempre por interesses econômicos imperiais e multinacionais e ao final resultaram na perda pela Bolívia de partes significativas de seu território – para não dizer da própria auto-estima nacional – e de sua única conexão com o mar, com drásticas conseqüências para o futuro da sua economia. Tal história de pilhagem, de riquezas e territórios, provocou também suas próprias resistências e oposições, manifestadas pela emergência de ações e programas nacionalistas da mais diversa índole e intensidade, bem como por importantes rebeliões indígenas ou movimentos revolucionários de variadas origens e inspirações, tudo isso dentro de um complexo cenário pautado por uma histórica instabilidade política.
Essa trágica história remonta a 1544, quando foram descobertas pelos conquistadores espanhóis as maiores reservas mundiais de prata nas montanhas da região de Potosí, no Alto Peru (atual território boliviano). Potosí se converteu logo numa das mais importantes regiões do império espanhol. Passou a deter a maior aglomeração humana do continente americano e a se constituir no centro economicamente mais próspero, chegando a exportar metade da prata do mundo. Tanto que em meados do século XVII a prata de Potosí representava praticamente a totalidade das exportações da América espanhola, respondendo pela principal fonte de receita para a coroa.
Entretanto, a exploração dessa enorme riqueza se deu por meio da imposição à população autóctone de um sistema de trabalho compulsório, denominado “mita”, pelo qual os indígenas sorteados para o trabalho obrigatório recebiam baixíssimos salários. Do que recebiam, ainda pagavam impostos e as dívidas contraídas pela compra também compulsória de mercadorias importadas pelos próprios administradores coloniais. Esse procedimento foi endurecido ainda mais pela coroa espanhola no final do século XVIII, a fim de aumentar suas receitas. No geral, tal sistema significou na prática a escravização dos indígenas para a extração da prata. Desnecessário aqui alongar sobre os efeitos dessa violência sobre as culturas autóctones.
Mas os quéchua e os aymará resistiram quanto puderam a tal sistema de exploração. Estima-se que, somente no século XVIII na Bolívia e no Peru ocorreram mais de 100 revoltas e rebeliões indígenas, em sua maioria desorganizadas. A mais importante delas foi a de Tupac Amaru II (1870-1783), liderada pelo nativo americano José Gabriel Condorcanqui que, considerando-se descendente da realeza inca, adotou o mesmo nome de seu antepassado indígena (Tupac Amaru), líder inca que havia se rebelado contra a dominação espanhola ainda no século XVI. O descontentamento rapidamente tornou-se uma revolta de grande escala. A ela juntaram-se aproximadamente 60 mil índios dos Andes Peruanos e Bolivianos que conseguiram, entre outros feitos, derrotar um exército espanhol de 1.200 soldados. Mesmo com a captura e morte de Tupac Amaru II, em 1781, a rebelião continuou posteriormente na região da Bolívia (Alto Peru), desencadeando outra revolta liderada por Tupac Catari.
Ao descontentamento indígena da época colonial se somou, sobretudo nos finais do século XVIII, o descontentamento dos criollos (filhos de espanhóis nascidos na América) que começaram a assumir papéis cada vez mais ativos na economia, especialmente na produção mineira e agrícola, e assim começaram ressentir-se das barreiras comerciais impostas pelas políticas mercantilistas da coroa espanhola e da falta de uma participação mais efetiva na administração colonial. Exatamente essa elite criolla irá liderar a grande massa de indígenas, descontente com o domínio e a exploração espanhóis, na luta independentista iniciada no começo do século XIX, que culminou com a definitiva conquista da independência política da Bolívia em 1825.
Já durante o período republicano, no final do século XIX e início do XX, três acontecimentos marcariam profundamente essa trágica história do povo boliviano. O envolvimento e a derrota do país em duas guerras (Guerra do Pacífico, contra o Chile entre 1879 e 1884, e Guerra do Chaco, contra o Paraguai entre 1932 e 1935) e um conflito territorial (com o Brasil, na região do Acre, entre 1899 e 1903) revelariam as imensas dificuldades enfrentadas pela Bolívia na preservação da integridade de seus territórios originais e na busca de meios para usufruir e explorar suas próprias riquezas e recursos naturais.
O primeiro desses episódios foi a Guerra do Pacífico (1879-1884). O palco do conflito entre o Chile, de um lado, e a Bolívia e Peru, de outro, foi a região do deserto do Atacama, uma faixa de quase mil quilômetros da costa do Pacífico (norte do Chile atual). A descoberta nessa região de importantes jazidas de nitratos (salitre) precipitou reivindicações territoriais conflitantes entre esses três países – em que pese a propriedade anterior do território estar dividida entre a Bolívia e o Peru – que passaram a vender concessões de exploração do salitre a investidores internacionais, especialmente britânicos (ao final, os grandes beneficiários do conflito). Em 1879, conflitos envolvendo essas concessões levaram o Chile a declarar guerra à Bolívia e ao Peru, na qual os chilenos saíram vitoriosos. Em 1884, derrotada na guerra, junto com o Peru, a Bolívia perdeu para o Chile a província litorânea (350 quilômetros de costa) e o porto de Antofagasta, única conexão que tinha com o mar, além de seus campos ricos em salitre. Desde então, há um profundo ressentimento nacional contra os chilenos e uma não aceitação do Tratado de 1904, que confirmou a mutilação do território da Bolívia deixando o país sem um só porto de mar.
O segundo conflito envolveu o Brasil na disputa pela região do Acre, na virada do século XIX para o XX. Entre 1877 e 1879, começou a adentrar e povoar o território amazônico da Bolívia, a fim de explorar seus seringais, um número crescente de brasileiros oriundos do nordeste. Sem condições e meios de proteger e resguardar seu território (tal como já havia ocorrido na região do Atacama), a Bolívia tentou desesperadamente, com o aval do governo dos Estados Unidos, transferir o controle do Acre para o Anglo-Bolivian Syndicate de Nova Iorque, concedendo-lhe o monopólio de exploração da borracha na região, fato que radicalizou ainda mais a revolta dos brasileiros. Apesar das resistências bolivianas, fruto de uma intensa rebelião dos seringueiros brasileiros e, após uma tentativa anterior, foi proclamado finalmente em 1902 o estado independente do Acre. Esse novo estado foi anexado ao Brasil em 1904, ano seguinte ao da assinatura do Tratado de Petrópolis que pôs fim ao conflito brasileiro-boliviano. Pelo acordo, o Brasil incorporou o território de 190 mil Km2, mediante o pagamento à Bolívia da indenização de 2 milhões de libras esterlinas e o compromisso da entrega de uma área de fronteira no Mato Grosso de pouco mais de 3 mil Km2 e da construção da estrada-de-ferro Madeira-Mamoré para permitir uma conexão da Bolívia com o Oceano Atlântico, acesso esse que de fato nunca se concretizou. A diplomacia brasileira lançou mão do velho princípio do “uti possitetis solis” que confere o direito ao território a quem o ocupa de fato.
O terceiro conflito foi com o Paraguai, na chamada Guerra do Chaco (1932-1935). O palco foi a região do Chaco boliviano, um território desolado e desértico (tal como o de Atacama), situado na fronteira com o Paraguai. Na década de 1920, a descoberta de petróleo nessa região ocupada majoritariamente por paraguaios, aliada à cobiça de companhias britânicas e norte-americanas sobre tal riqueza, precipitou a guerra entre os dois países. Duas multinacionais do petróleo tiveram uma atuação decisiva no conflito: a companhia norte-americana Standard Oil of New Jersey, que se colocou do lado da Bolívia; e a companhia anglo-holandesa Royal Dutch-Shell, que se colocou do lado do Paraguai. Diante da fragorosa derrota militar imposta pelas forças paraguaias, a Bolívia perdeu, além dos cerca de 60 mil indígenas que formavam os seus exércitos, mais 250 mil Km2 de seu território. Além disso, tal como havia ocorrido no caso de Atacama, a Bolívia perdeu mais uma possibilidade de saída para o mar, nesse caso através do rio Paraguai, a partir da região do Chaco.
De uma análise crítico-comparativa desses três conflitos algumas breves conclusões podem ser extraídas. Na raiz dos mesmos encontramos basicamente a questão das disputas, envolvendo países vizinhos e interesses econômicos de empresas multinacionais em torno das riquezas e recursos naturais dos territórios bolivianos. Nas regiões do Atacama, do Acre e do Chaco boliviano – que apesar das eventuais imprecisões e controvérsias sobre os limites fronteiriços pertenciam de fato à Bolívia – ocorreu um processo comum de lenta e contínua ocupação por não-bolivianos, atraídos pelas descobertas nesses territórios de importantes riquezas naturais que logo despertaram cobiça por parte tanto de países vizinhos quanto do capital internacional. Igualmente, nesses três conflitos esteve bastante presente uma questão crucial para a economia boliviana, qual seja, a garantia de uma conexão com o mar.
Tais episódios deixaram cicatrizes traumáticas na sociedade boliviana, tornando-se um assunto delicado e frequentemente retomado pelas ondas nacionalistas e nacionalizantes que volta e meia se abatem sobre os sucessivos governos. O saldo final dessas guerras e conflitos foi a perda pela Bolívia, além de uma saída para o oceano, de mais da metade de seu território original desde a época da independência, com todas as riquezas neles existentes, provocando trágicas consequências futuras para a economia e a política do país, mas sobretudo para o já sofrido e explorado povo boliviano. Um povo que, segundo Eduardo Galeano, há cinco séculos vem sendo amaldiçoado pelas imensas riquezas naturais de seu próprio território, que se evaporam como gás em mãos alheias. Um povo pobre, entre os mais pobres da América do Sul, submetido historicamente à ditadura de seu próprio subsolo. Seria essa a triste sina de um povo amaldiçoado pelas riquezas naturais de seu próprio território?
Somente com base nessa ignorada e trágica história é possível compreender em outro patamar os últimos acontecimentos na Bolívia, envolvendo a ascensão do presidente aymará Evo Morales à presidência da República e seu audacioso projeto nacionalista de redefinição do modelo de exploração dos recursos naturais do país, que visa em última instância transformar o povo boliviano no principal beneficiário de suas próprias riquezas naturais. Exageros retóricos e deslizes diplomáticos à parte, com base nessa história pode-se compreender ainda, por outro lado, a temerosa preocupação do governo da Bolívia, escaldada pelos acontecimentos do passado já referidos, quanto à significativa presença de estrangeiros em seus territórios de fronteira, que vão desde humildes trabalhadores até agricultores proprietários de vastas extensões de terras, sobretudo brasileiros. Inquietude talvez exagerada, porém justificável, para um país que no passado perdeu importantes territórios sob o argumento do velho princípio jurídico de prescrição aquisitiva, conhecido como “uti possitetis solis”, uma espécie de equivalente colonial do nosso atual usucapião. Sem contar ainda a temerosa e justificada preocupação com a forte presença e concentração de capitais e empresas estrangeiras atuando no país.
Afinal, persiste para os bolivianos a pergunta: Como garantir, no presente, que não aconteça com o seu gás natural o mesmo que ocorreu no passado com a prata, os nitratos, o estanho, o petróleo e outros de seus formidáveis recursos naturais? Da eliminação dessa possibilidade dependerá o futuro da economia, da justiça social e da democracia na Bolívia, para não dizer em toda a América Latina. Nessa perspectiva, a questão boliviana é um drama que afeta a toda a América Latina e extrapola fronteiras e governos nacionais. E que diz respeito ao direito de cada povo a sua autodeterminação e usufruto pleno de suas riquezas em seu próprio benefício.
Em suma, esse é o dilema histórico fundamental de uma República que contraditoriamente leva no próprio nome a homenagem a Simon Bolívar, ícone da causa da independência, da liberdade e da unidade latino-americana, mas que se confronta de forma trágica com a realidade dos difíceis caminhos para a concretização dos nobres ideais sonhados e buscados por esse libertador. Potosí, Atacama e outros dramas do passado ainda persistem bastante vivos na memória dos quéchua, aymará e mestiços bolivianos, mas felizmente ao lado do exemplo do heróico espírito de resistência de Tupac Amaru.
por Eugênio Rezende de Carvalho, Doutor em História Social e das Idéias pela Universidade de Brasília e professor da Universidade Federal de Goiás, onde exerce a docência e desenvolve pesquisas na área de História Latino-americana. É autor dos livros Nossa América: a utopia de um novo mundo (São Paulo: Anita Garibaldi, 2001) e América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (Goiânia: UFG, 2003) | Texto original em português do Brasil
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