O texto Chega de mitos da articulista Mariliz Pereira Jorge, publicado a 28 de março, na Folha de São Paulo, até começa com um bom argumento. De fato, a vitória retumbante de Jair Bolsonaro em outubro de 2018, com seu séquito e sua cruzada obscurantista, pode ser didática para a população brasileira.
Salta aos olhos os desastres empreendidos e teimosamente insistidos pelo atual governo federal. Concordo também com a frase inicial do texto que diz “Imaginava que o governo Bolsonaro seria ruim, mas nem nos piores pesadelos poderia sonhar que viveríamos esta tragédia”.
Quando a articulista compara o atual presidente trapalhão com outros presidentes do país, entretanto, o texto se perde por completo. Mariliz taxa Getúlio Vargas de autoritário, Juscelino Kubitschek de megalomaníaco e Luís Inácio Lula da Silva de um mito tão falso quanto o eleito em outubro.
Para começar, Getúlio pode ter sido autoritário, sobretudo durante o Estado Novo (1937 a 1945), mas reduzi-lo a isso é, no mínimo um simplismo e uma falta de compreensão política e histórica.
Na presidência, Vargas atravessou o rescaldo da crise de 1929, atravessou toda a 2ª Guerra Mundial e o início da Guerra Fria. Com ele no poder, o Brasil viveu suas mais profundas transformações. Grosso modo, o país deixou de ser predominantemente rural e começou a viver um processo intensivo de urbanização e industrialização, trazendo a reboque mudanças na legislação e na composição do governo que atendiam a esse processo.
Juscelino pode ter sido megalomaníaco, mas isso não nos interessa. O que interessa é que ele conseguiu colocar em prática e realizar sua grande aspiração de crescer 50 anos em 5, aproveitando de forma perspicaz o clima de desenvolvimento econômico que o ocidente vivia na década de 1950. Nem de longe algum deles lembra o despreparado, raso e irresponsável Jair Bolsonaro.
Quanto à Lula… Ora, é um grande cinismo e um grande despeito comparar um presidente que manteve alta popularidade (e não foi à toa) durante todo o período em que se transcorreram seus dois governos, com um nanico do baixo clero que, por um erro de cálculo dos detratores do PT, alcançou o poder, e agora não sabe o que fazer com ele.
Entre 2003 e 2011, conforme relatou a mesma Folha de São Paulo (de 19 de dezembro de 2010) para qual Mariliz escreve, o Brasil viveu um período de crescimento e avanços sociais. O jornal até faz críticas ao crescimento abaixo do esperado de serviços públicos, mas enaltece grandiosos feitos do presidente como a criação de 14 milhões de postos de trabalho com carteira assinada, a ascensão de toda uma classe social, a classe C, a expansão da transferência de renda pelas vias do Bolsa Família e da valorização do salário mínimo, a superação da dívida externa, o alcance à posição de 8ª economia do planeta e um ótimo prestígio internacional. Não é pouca coisa. Não há sinais de que o governo do PSL alcançará resultados como este.
Além disso, Lula não foi uma zebra. Ele tem uma história política construída entre trabalhadores metalúrgicos organizados contra explorações, injustiças e desmandos de determinados patrões e determinadas políticas sanguessugas. Sua eleição em 2003 foi consequência de um amadurecimento dele próprio e de setores da esquerda que, naquele momento, não viram como inimigos setores da sociedade identificados com espectros políticos de centro e de direita, e que se mostravam comprometidos com o Brasil. Foi um governo de composição. Uma evolução natural do governo republicano de Fernando Henrique Cardoso em uma época em que avistávamos um caminho de desenvolvimento, de soberania e de consolidação da democracia. Mesmo assim, seus apoiadores não caem no ridículo de chama-lo de “mito”, como a articulista sugere que ocorre.
Que o governo Bolsonaro apodreceu antes de amadurecer é fato. O que virá adiante é o que deve nos preocupar. Atirar para todos os lados é o caminho mais rápido para atirar no próprio pé.
Texto em português do Brasil