Na quarta-feira Jair Bolsonaro fez uma inflexão no discurso e na conduta do governo em relação à pandemia, curvando-se à necessidade da vacinação. É cedo para saber se é para valer. Horas antes, falando a uma hora de seguidores, ele alimentou o discurso anti-vacina dizendo que não irá tomá-la “e ponto final”. Há quem acredite que a nova postura atende a pressões poderosas e busca reduzir danos políticos.
Há quem acredite que ele fará, também, um ajuste na política externa, em busca de acomodação com o novo poder americano. Em dois anos de governo, a política de Araujo-Bolsonaro só rendeu ao Brasil perda de prestígio e influência, isolamento e desmoralização. Mas a mudança agora exigiria o sacrificio do chanceler Ernesto Araujo, que ele muito aprecia, pela devoção ao credo bolsonarista e sua transposição para a política externa. A mudança também iria contraria os apoiados de Bolsonaro na extrema direita, aqui dentro e nos Estados Unidos.
Na eleição americana, alinhando-se a Trump ostensivamente, como jamais fez um presidente brasileiro, recusando-se a aceitar a vitória de Biden, alimentando a retórica das fraudes e sendo o penúltimo governante do mundo a cumprimentá-lo, Bolsonaro completou o rol das situações consideradas insustentáveis e inconcebíveis para um país como o Brasil: está brigado com a China, nosso maior comprador, não contará com a simpatia do novo governante americano, que poderá pressioná-lo em questões ambientais e de direitos humanos, já brigou com alguns europeus e não tem um só aliado no continente sul-americano.
A servidão a Trump não trouxe qualquer benefício ao Brasil. Pelo contrário, o Brasil é que fez concessões, como no etanol, e sofreu sanções comerciais, como em relação ao aço e ao lumínio. Na hostilidade a Biden, Bolsonaro não apenas só o reconheceu e cumprimentou após a confirmação pelo Colégio Eleitoral. Ele também difundiu a narrativa trumpista das fraudes, induzido por um embaixador em Washington (Nestor Foster ) empenhado em agradá-lo, e não em melhor informá-lo para a tomada de decisão.
É claro que os EUA, no governo Biden, vão preservar pragmaticamente as relações com o Brasil, em nome de seus interesses locais e regionais. Mas como diz o ex-chanceler Celso Amorim, “amiguinho de Bolsonaro o Biden não será”. Tendo ele colocado a questão ambiental no alto de suas prioridades, pelo menos nesta área, e também na de direitos humanos, irá pressionar Bolsonaro.
Assim, pode ter chegado a hora de mudar uma política externa que parece ter esgotado sua capacidade de prejudicar os interesses nacionais e de angariar adversários internos. Anteontem, “A reconstrução da política externa brasileira” foi o tema de seminário que reuniu no Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) quatro ex-chanceleres de diferentes governos: Rubens Ricupero, Celso Lafer, Celso Amorim e Aloysio Nunes Ferreira. Eles têm diferenças políticas mas comungam o diagnóstico de que a atual política externa precisa mudar. Como resume Amorim: “Para todos nós é incompreensível que um país como o Brasil dê-se ao luxo de brigar com as duas maiores potências mundiais”, afora as rusgas com governantes europeus e o isolamento continental.
Na avaliação de Amorim, ex-chanceler de Lula, Bolsonaro está numa disjustintiva.
“Ele poderá optar por uma acomodação na relação com o governo Biden, e para isso teria que mudar algumas políticas internas, começando pela ambiental. Teria talvez que mudar o chanceler e o ministro do meio ambiente. A acomodação, entretanto, o indisporia com seus apoiadores da extrema-direita, tanto internamente como também nos Estados Unidos, onde ela tem força política, financeira e poder de fogo”.
A outra opção é não mudar nada, mantendo Araújo e seguindo no mesmo trote, hostilizando a China, não buscando se entender com Biden e ampliando o isolamento. Mas isso terá consequências práticas para as oligarquias internas que ainda apoiam o presidente, como o agronegócio, especialmente agora que Bolsonaro entregou-se ao velho fisiologismo aliando-se ao Centrão.
Na terça-feira o Senado rejeitou a indicação do embaixador Fabio Mendes Marzano como represetante do Brasil junto à ONU em Genebra, o que raramente acontece. Tudo começou porque, durante a sabatina na Comissão de Relações Exteriores, ele se recusou a responder à senadora Katia Abreu (PP-TO), que lhe perguntou como via as dificuldades para a conclusão do acordo União Europeia-Mercosul, em função de problemas como o desmatamento crescente da Amazônia. Ele até poderia ter se recusado a responder dizendo não ser de sua alçada, mas violou a liturgia parlamentar, foi inábil e arrogante. Talvez por ser um dos queridinhos do chanceler. No plenário, o senador Major Olimpio tomou as dores da senadora e pediu a rejeição de seu nome, o que acabou acontecendo pelo placar expressivo de 37 a 9.
Nem todos os votos, entretanto, foram dados em solidariedade a Katia. Muitos aproveitaram para mandar recado ao governo, para expressar a contrariedade com a política externa. Entre estes, senadores do Centrão que são também ligados ao agronegócio, setor que vê suas exportações ameaçadas pelas rusgas do governo com a China. Mas não só grãos a China compra. Há outros setores das oligarquias nacionais contrariados. Ajudaram a parir Bolsonaro e o sustentaram enquanto ele teve o apoio de Trump. Agora, sem rumo econômico, perdido na pandemia, brigando com o mundo e até com os Estados Unidos, começou a tornar-se um estorvo.
Por coincidência, nesta hora em que a próxima posse de Biden estimula o debte sobre a necessidade de ajuste na bússola do Itamaraty, circulou a informação de que o ex-presidente Michel Temer poderia vir a substituir Araújo dentro de uma reforma ministerial que estaria programada para janeiro. Temer talvez fosse um chanceler dócil a uma diplomacia profissional e preparada, seguindo o figurino.
Mas o problema não é apenas substituir Araújo, tirando do Itamaraty um cardeal tão dedicado ao credo bolsonarista. Hoje, em declaração ao colunista de O Globo Bernardo Mello Franco, o embaixador Roberto Abdenur afirmou:
“Há uma seita fanática na essência do governo Bolsonaro. A política externa atual está enraizada nesse extremismo. O Brasil se desmoralizou e se isolou no mundo. Estamos hostilizando a China e agora vamos ficar mal com os EUA”.
Sendo assim, de nada adiantaria a troca de chanceler, se o presidente continuará sendo o mesmo, fiel à mesma seita fanática, rezando pela mesma cartilha. A política externa ideológica e religiosa (no sentido de fidelidade a dogmas) atual precisa ser trocada por outra que coloque acima de tudo os interesses do Brasil, que seja guiada pela racionalidade e que resgate a reconhecida tradição de nossa diplomacia. Ela fez do Brasil um país admirado por sua capacidade de dialogar, arbitrar conflitos e contribuir para a construção de instituições multilaterais. Como seria possível implementar tal política num governo que tem atração fatal pelo conflito e a discórdia? Quando miram a política externa, as elites nacionais podem estar dizendo que a indulgência para com Bolsonaro está acabando.
Por falar em multilateralismo, o Brasil está devendo contribuições à ONU, e se não pagar suas dívidas até dia 31, perderá o direito de voto, justamente na hora em que será decidido seu pleito a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Havia dinheiro no orçamento do Itamaraty mas o ministro da Infraestrutura, Rogerio Marinho, lançou mão de R$ 1,2 bilhão para sua pasta. Torrou o dinheiro liberando emendas parlamentares. Pagando por apoio político. Agora, só com um crédito suplementar, se o Congresso puder votá-lo antes do recesso.
Em breve saberemos que escolha fez Bolsonaro: a de ajustar-se à circunstâncias, mesmo pagando um preço à extrema-direita, ou a de seguir na mesma toada que tem feito tanto mal ao Brasil. E que mais adiante também apresentará sua conta.
Texto original em português do Brasil
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