Nessa altura do campeonato de destruição nacional que Bolsonaro disputa contra o Brasil, não é provável e nem mesmo urgente que nos livremos dele pelo afastamento do cargo, como punição a seus crimes – sejam comuns ou de responsabilidade. As eleições vêm aí e o povo é o juiz supremo. Mas é certo que ele nunca havia se encalacrado com a Justiça como agora.
Se vai dar em nada novamente, não dá para saber. Bolsonaro escapou mais uma vez anteontem, quando a PF concluiu que ele não prevaricou, embora tenha ouvido uma denúncia de possível corrupção e não tenha agido como manda a lei. Mas hoje as coisas se complicaram como nunca para ele na arena criminal.
A PF concluiu que, mesmo não tendo prestado depoimento, ele, juntamente com um deputado e um auxiliar, cometeu crime ao vazar dados sigilosos de um inquérito do TSE. Bolsonaro e o deputado Filipe Barros (PSL), por terem foro especial no STF, não foram indiciados porque isso depende de autorização do Supremo. Já o terceiro participante, o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens da Presidência,foi. O deputado entra na história por ter sido quem requereu o acesso ao processo, uma prerrogativa de parlamentares, e o repassou a Bolsonaro.
O presidente e o deputado, entretanto, ainda podem ser alvo de uma denúncia ao STF para que sejam processados. Isso vai depender do ministro Alexandre de Morais e principalmente do procurador-geral Augusto Aras.
Quando ocorre uma denúncia contra o presidente por crime comum, o Supremo pede uma licença à Câmara para processá-lo. E o presidente é imediatamente afastado do cargo até o final do julgamento. A votação exige o apoio de 2/3 dos votos, ou 342. Isso significa que se 171 negarem a licença, o presidente escapa, como aconteceu duas vezes com Temer.
O inquérito foi conduzido por uma delegada das mais respeitadas da PF, Denisse Ribeiro, que considerou inócua, para sua conclusão, a falta de Bolsonaro ao depoimento marcado para sexta-feira passada.
Ontem o ministro Luis Roberto Barroso, presidente do TSE, adicionou informações sobre a gravidade do crime cometido quando, ao atacar o sistema de votação eletrônica numa live do ano passado, Bolsonaro divulgou elementos de um inquérito do TSE sobre uma tentativa infrutífera de ataque cibernético em 2018. Não satisfeito, e insistindo em dizer que isso era prova da vulnerabilidade da urna, no dia seguinte ele postou em redes sociais o link de acesso ao processo no TSE. Barroso informou que o vazamento do link colocou em risco a segurança do sistema do TSE, facilitando o acesso de criminosos da Internet. O tribunal teve que tomar providências tecnológicas para restaurar a segurança.
O que acontece agora? Alexandre de Moraes foi rápido no gatilho. Recebido o processo, já marcou prazo de 15 para o procurador-geral da República, Augusto Aras, dizer se concorda ou não com a conclusão de que houve crime. Aras, servil a Bolsonaro, tem engavetado, com investigações preliminares que nunca terminam, as queixas-crime contra o presidente. Mas nos últimos dias ele tomou decisões que são pontos fora da curva. Anteontem, seu vice Humberto Jacques denunciou o ministro da Educação, Milton Ribeiro, por crime de homofobia. E ficamos sabendo que, ainda no ano passado, quando a AGU pediu o arquivamento do inquérito sobre o vazamento que envolve o TSE, ele deu parecer favorável à continuidade do inquérito cuja conclusão foi divulgada hoje. Vamos ver o que fará agora. Se concordar que houve crime, estará assinando uma denúncia.
Disse a delegada em seu relatório: “Todos, portanto, revelaram fatos que tiveram conhecimento em razão do cargo e que deveriam permanecer em segredo até à conclusão das investigações, causando danos à administração pela vulnerabilização da confiança da sociedade no sistema eleitoral brasileiro e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tudo com a adesão voluntária e consciente do próprio mandatário da nação.”
Agora, todos dizem não terem sido informados de que o inquérito era sigiloso: a AGU, que defende Bolsonaro, o deputado, o ajudante de ordens e mesmo o delegado que forneceu o acesso ao deputado. A capa não teria etiqueta de sigiloso, mas algumas peças do processo, sim, estavam identificadas como tal. Bolsonaro divulgou o link com acesso a todo o processo, e um irmão do ajudante de ordens Mauro Cid o disponibilizou num servidor baseado nos Estados Unidos, permitindo livre acesso pela Internet. Para a delegada, não importa se foram avisados ou não: o sigilo é inerente aos inquéritos para garantir o êxito das investigações.
Uma coisa é certa: pela primeira vez a PF imputa crime a Bolsonaro, apontando um crime que é claro como água. E isso acontece quando Aras dá alguns sinais de independência e membros do Centrão já começam a se desgarrar do governo, diante do favoritismo eleitoral de Lula na disputa presidencial.
Não estou dizendo que vamos ter Bolsonaro processado, e talvez afastado, mas que as chances nunca foram grandes como agora.
Texto original em português do Brasil