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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

BRASIL Crónica de uma crise anunciada

De repente, não mais do que repente, eis que o Brasil mergulha numa nova crise política que pode levar à queda do presidente e do governo. Delação dos donos da JBS, a maior empresa exportadora de carne do mundo, expõe um universo de financiamento ilícito dos partidos só equivalente, pela sua extensão e volume, ao que já fora revelado pela Odebrecht.

São 1,4 mil milhões de Reais da primeira contra 1,68 mil milhões de Reais da segunda, destinados a 1829 (mil, oitocentos e vinte e nove!) políticos de 28 partidos: da esquerda à direita, passando pelo centro, é todo o sistema político do país que se revela contaminado!

Numa como noutra dessas empresas, e a exemplo do que se passou com várias outras, o modus operandi era idêntico – garantia de contratos milionários com o sector público e favores legislativos em troca de financiamento ilícito e suborno aos partidos e aos políticos.

Tudo concretizado através de homens de mão colocados pelos partidos nos lugares-chave das empresas públicas onde se decidem os grandes negócios. Mas a revelação desta semana foi ainda mais grave – uma conversa gravada (com supervisão da PGR e da polícia) entre o presidente Michel Temer e o dono da JBS, Joesley Batista, em que este dá conta de uma série de ilegalidades e até possíveis crimes sem que o chefe do Estado o conteste.

Pelo contrário, a tudo parecendo dar anuência ou consentimento! E isso num cenário de filme e conspiração – a meio da noite, com entrada no palácio pela garagem, para não haver registo da visita… As denúncias também atingiram em cheio o líder do PSDB e ex-candidato à presidência do país, Aécio Neves, que já é alvo de vários inquéritos; e igualmente o PT, ao ser afirmado, pela JBS, que mantinha contas bancárias em milhões de dólares (70/80 milhões para cada) destinadas a financiar as campanhas de Lula e Dilma.

Levantou-se assim um tsunami político no Brasil inteiro, abrindo uma nova crise, de desfecho ainda incerto. É o regresso à instabilidade – logo agora que Temer tinha acabado de festejar um ano de governo com alguns indícios de que a economia podia estar, finalmente, a sair da recessão.

Acordo fáustico, crise previsível

O novo escândalo surgiu de forma inesperada, quando tudo parecia já encaminhar-se para alguma forma de entendimento entre os políticos e setores do judiciário com vista a travar as investigações da Lava Jato, deixando-as ficar, no máximo, onde elas até agora chegaram.

Mas a verdade é que nada do que está a acontecer é inteiramente surpreendente. Desde que Dilma foi afastada e Temer assumiu, já se sabia, com efeito, que algo de parecido poderia ocorrer. Basta recordar que pelo menos três dos seus principais ministros foram logo de início afastados por denúncias vindas a lume e outros oito (oito!) dos que ainda permanecem são alvo de investigações.

O próprio Michel Temer foi acusado pelo dono da Odebrecht de ter pedido, ainda quando era vice-presidente, um financiamento de 40 milhões de reais para o PMDB. Com o núcleo duro assim contaminado em termos de moral pública e a Lava Jato continuando a todo o vapor, era só uma questão de tempo para que uma nova crise surgisse. A aposta dos políticos, do empresariado, do mercado em geral e dos media dominantes – que não se cans(ar)am de dar apoio a Temer – era, no entanto, a de que tudo podia passar sem problemas de maior desde que a economia arrancasse.

Uma espécie de acordo fáustico, em que se perdoava o mal conhecido e aceite pelo bem que se esperava pudesse surgir – a concretização de reformas consideradas imprescindíveis para relançar a economia, designadamente a das Leis Laborais e a da Previdência, aliás rejeitadas pela maioria da população.

Agora, a realidade por detrás dos panos irrompeu de novo e esse acordo é posto em causa. O escândalo é enorme, parte da sociedade civil já se distanciou do acordo fáustico e quer a saída de Temer. Mas este resiste e – ao menos para já – sem grandes manifestações de descontentamento nas ruas, os partidos que o apoiam ainda hesitam. Quem sabe se tudo poderia ainda voltar ao “normal”…

Parece evidente, no entanto, que insistir no mesmo esquema significaria apenas prolongar a agonia, adiando ainda mais a solução do problema. Enquanto não chega uma profunda reforma política e quiçá, também, constitucional, que elimine as vias abertas da corrupção já identificadas – caríssimas campanhas eleitorais que exigem financiamentos milionários, milhares de cargos de confiança à disposição dos políticos nas empresas públicas, tempos de propaganda eleitoral nas televisões negociáveis entre os partidos, etc., etc. – não se vê melhor alternativa democrática que não seja devolver a voz ao povo.

Os partidários da situação argumentam que isso poderia criar mais instabilidade, além de não estar previsto na Constituição, defendendo por isso que se siga o script traçado na lei fundamental: eleição indirecta, dentro do Congresso. Mas será que este Congresso – atravessado por denúncias de corrupção e compra de votos – tem, ele próprio, legitimidade suficiente para produzir uma solução que recupere a confiança do país e dos mercados?

Além do mais, embora prevista, a forma da eleição indirecta não está regulamentada. E concretizá-la poderá ser tão moroso e/ou conflituoso como aprovar uma simples emenda constitucional que abra caminho a eleições gerais antecipadas. Com a vantagem de que estas últimas seriam certamente a melhor maneira de reconciliar o país consigo mesmo. O Brasil não merece menos.

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