A fé desapareceu e Marcelo, no dia de posse, fez bem em convocar todas as religiões para lhes dizer que têm um papel na sociedade. Depois de 1975 o culto e a Igreja, principalmente a Católica, foram finalmente afastadas do poder do costume e da lei, depois de oito séculos de poder. O secularismo contemporâneo, correcto e necessário, teve uma consequência: o buraco na vida espiritual.
Um Estado laico não implica uma sociedade positivista. Mesmo para um pós-teista ou um ateu a vida espiritual não deve ser um luxo ou uma ofensa. O papel da fé, antes, e da espiritualidade, agora, é tão importante como a boa nutrição. A fé implica a falta de dúvida e isso pode ser perigoso, mas a dimensão do espírito não é negligenciável, uma vez que permite quer a imaginação quer a guarda de um conjunto de valores.
As Igrejas, organizações políticas de poder que dominam códigos religiosos com base na crença que advém da fé, usaram os seus concidadãos tempo demais. Exploraram os seus medos, intrometeram-se nos seus costumes e comportamentos. Opuseram a moral, que era seu exclusivo, à ética cívica e comunitária.
As discussões como as da eutanásia, do aborto, da liberdade de género ainda sofrem com o peso dessa moral. Uma sociedade que tivesse vida espiritual e filosófica sem obrigação dogmática saberia, saberá, desenvencilhar-se dos prolegómenos da metafísica.
Mas tudo isto tem mau nome: fé, espiritualidade, filosofia. São registos que o mundo material rejeita, quer à sombra do capitalismo consumista quer na velha tendência do ópio do povo. Preconceituosa, a sociedade laica e secularista ainda não passou a adolescência da rebeldia anti-clerical e mistura tudo.
Pelo meio apareceram as Donas Brancas da exploração da crise espiritual: as IURDs deste mundo, sintomáticas e exploradoras, propagandísticas e sequestradoras, que trabalham o medo do vazio e da morte como se de um produto pop se tratasse.
Ganharíamos como comunidade em passar a enorme energia gasta antes com histórias da carochinha para uma vida onde a filosofia, a dialéctica, a esperança e a vida espiritual saudável (ateia, até) fosse promovida de baixo, sem preconceitos, sem dogmas, sem medo.
Ao fazê-lo, ao olhar para a dimensão metafísica com saúde, acabaríamos com grande parte das desculpas para os dramas do mundo, porque nenhuma Síria, Israel ou Arábia Saudita poderia invocar um homem invisível para matar pessoas. Nem o venezuelano Maduro ouviria passarinhos a dizer que se agarre ao poder como lapa.