Estudar as matérias que a ciência das religiões oferece induz a alguns compromissos: em primeiro lugar a disponibilidade para entender e aceitar as religiões fora do quadro religioso, isto é, de um modo não confessional – o que implica maturidade científica e sentido crítico e a tranquilidade de uma postura incapaz de consagrar a inutilidade de convicções erradas como a estipulada pela velha querela: “ a minha religião é melhor do que a tua”.
Entender as religiões é um esforço de compreensão do Homem enquanto ser plural e (também) espiritual
Um ateu pode ser um profundo conhecedor de religiões, e um pastor, um padre e um imã podem não entender nada de religião, embora lhes pertença o domínio dos seus dogmas.
O que vemos no século XXI são alguns efeitos especiais que precisamos identificar: movem-nos (a nós, povos), o entendimento do Estado como unidade, como conjunto de instituições ao nosso serviço (ou contra nós, porque controlar e administrar uma nação nem sempre é favorável aos controlados e administrados da mesma, como aliás a história tem vindo a demonstrar).
Entendido o Estado, há que entender a Religião, que em casos extremos é absorvida pelo Estado, sendo o próprio Estado. Nesses exemplos, os equívocos estabelecem-se. E o primeiro é dizer que um Estado confessional é um Estado Teocrático. Difícil? Nem tanto. Os teocráticos são Estados dependentes da Religião: teocracia (do grego Teo: Deus + cracia: poder) é um sistema de governo em que as ações políticas, jurídicas e policiais são submetidas às normas de (algumas) religiões.
O Estado confessional tem uma religião – e muitas vezes é uma religião de Estado
Os que não possuem uma religião oficial chamam-se laicos. E este é um dos três vértices da pirâmide em análise: o Laicismo (sim, os outros vértices são o Estado e a Religião). Os estados laicos não são contra. Em particular, não são contra a religião. Pelo contrário, devem ser promotores do pluralismo religioso e da cidadania. Mas não chega.
Ser promotor do pluralismo não implica aceitar sem peias o plural. E apostar na cidadania pode não ser suficiente para gerar o intercultural (o modo efetivo de vivermos as nossas diferenças como um coletivo que se entende, no mesmo espaço e ao mesmo tempo).
Estamos portanto à distância de muito trabalho para aceitar verdades inegáveis: que o homem é um ser religioso e espiritual, mesmo quando as suas crenças nada tenham a ver com religiões instituídas ou estruturas de crença reconhecidas e que um ateu pode ser tão complexo e completo como um guru do hinduísmo ou do siquismo, um monge tibetano, um pastor evangélico ou uma freira de Fátima… (e demais exemplos semelhantes).
A garantia das liberdade deve vir à cabeça. A começar pela liberdade individual, cultural, de aceitar que se tenha religião e que se pratique a mesma. Há nesta passagem dois temas que se confundem: o laicismo – e a laicidade. O primeiro é princípio; uma ideologia de matriz claramente humanista. Valoriza as dimensões mais universais do ser humano, entendido na sua individualidade plural, tem um sentido contrário ao etnicismo ou, melhor, aos etnicismos – regionalismos, nacionalismos, etc. – que, acima de tudo, valorizam as diferenças e os particularismos por que se podem afirmar os diferentes grupos humanos.
Ser laico é uma opção humana, que promove o indivíduo (menos do que o individualismo). É consagração respeitadora do Humanismo.
Laicidade, por seu turno, designa os diferentes modos concretos desse princípio ser levado à prática e opõe-se à etnicidade que releva muito especialmente as diferenças e as identidades de grupo.
Disse que voltaria ao tema burquini – e mesmo que tal não pareça, é o que faço agora
Escrevi neste mesmo jornal que a maior parte da Humanidade não sente ter problemas filosóficos – e felizes são os que não se questionam, ou simplesmente acreditam em formatos que os confortam. É verdade. Notei isso nas reações ao artigo – as mais entusiastas foram produzidas por um hebreu e por dois muçulmanos, em comentários de grande amizade e acerto. Concordam comigo que o que está em causa não é o formato religioso – mas o político. Que a sociedade de tipo laico tem muito a aprender com o que se passou (e que as sociedades fundamentalistas estão a anos-luz dessa compreensão e falta-lhes, entre outras aprendizagens, o respeito e a sabedoria de uma cultura do género.
Quando os filósofos de Alexandria, no Egito, promoveram o sincretismo de Ísis e Palas Athena, a deusa grega da Sabedoria, o seu templo, em Saís, passou a ostentar uma máxima que veio a tornar-se clássica: “Eu sou tudo o que é e o que sempre será. Mortal algum jamais erguerá meu véu!” Ora, na condição de simples mortal, isto é, de profano não iniciado nos Mistérios, o aspirante permaneceria à margem do conhecimento, até que este lhe fosse revelado pela abertura dos “olhos espirituais”.
O mundo em que vivemos precisa de apostar numa cultura revolucionária. Dessas em que os iniciados aprendem sempre – por exemplo, a viverem as suas diferenças.
Voltarei ao tema (para a semana).
Este artigo respeita o AO90