“(…) engrenagem admiravelmente montada, cujo primeiro elo está no Terreiro do Paço e o último se encontra no mais modesto regedor da mais remota paróquia.”- é desta forma que Mesquita de Carvalho [1] define o “caciquismo” tal como ele surgia no final do século XIX e princípios do século XX.
Este fenómeno, característico sobretudo dos países ibéricos, é impeditivo do exercício pleno da cidadania e é limitador da autonomia e da liberdade individual. Dado que continua a ser uma realidade no Portugal do século XXI, merece que lhe dediquemos um pouco de atenção…
A origem do nome remonta aos chefes índios da América do Sul que os conquistadores espanhóis usaram para servir de ligação entre as populações e a administração colonial. Estavam no centro… e assim iam servindo alguns interesses locais ao mesmo tempo que iam usando, em benefício próprio, a influência conseguida. O poder conseguido servia/serve ao cacique para distribuir benesses vários por um núcleo reduzido de pessoas, os seus apoiantes.
Hoje, os caciques continuam a garantir alguns serviços à colectividade, por exemplo, estradas ou outras estruturas, dependendo das condições de cada aldeia ou cidade, mas o que é privilegiado na sua acção é a repartição de bens e serviços, incluindo o bem mais precioso nos tempos actuais – o emprego – aos seus seguidores. Estes, algumas vezes também dão algo em troca, por exemplo, prestam informações, fazem a defesa pública do cacique, contribuem, sobretudo ao nível do apoio eleitoral.
Uma comunidade organizada com base no caciquismo e no clientelismo é uma comunidade que se situa a um nível de subdesenvolvimento, onde não há discussão de ideias e projectos, onde a sociedade civil, nas vertentes económica, social e cultural, se encontra em estado de apatia, de não-existência. A arbitrariedade, a chantagem e a ameaça tornam-se a regra de actuação para os que não são “fiéis”. A discussão e a participação democráticas são substituídas pela vontade do cacique cuja única finalidade é auto promover-se, perpetuando o seu poder de “regedor”.
Por cá, não temos a figura do “coronel” como no Brasil, mas temos “figuras” equivalentes. E o dilema é sempre o mesmo: são as pessoas que, ao votar, escolhem, mas quando estas não têm autonomia, pode ainda falar-se de escolha livre?
O aumento do caciquismo é mais um sinal, entre tantos outros, das dificuldades da democracia em Portugal. No pós-25 de Abril, o poder local foi factor de democratização e de desenvolvimento. A solução de muitos problemas locais passou pela transferência de competências para os municípios, as câmaras conseguiram mobilizar as populações, os recursos e os meios para melhorar, efectivamente, a qualidade de vida das populações.
A partir de finais dos anos 80 teve início uma viragem: o poder político começou a ser visto não como serviço que visa o bem comum mas como um fim em si e, em um número cada vez maior de municípios, vários autarcas instalados no poder foram criando vastas clientelas de dependentes. A corrupção foi-se alargando, sendo, muitas vezes, as verbas desviadas para favorecer negócios privados ligados, por exemplo, a clubes de futebol.
Os partidos políticos mostraram-se incapazes de renovarem os autarcas que lhes ofereciam condições de ganhar eleições. Ou, quando o conseguiam fazer, logo surgiram “independentes”. Estes vão-se instalando, reproduzindo os erros que supostamente desejariam combater.
O descrédito tornou-se total naquilo que foi uma das experiências mais enriquecedoras da democracia, o poder local. Este está, hoje, em larga maioria, refém do caciquismo. Quando se comemoram os 40 anos do poder local e quando novas eleições se avizinham, era bom que “trocássemos umas ideias sobre o assunto”.