Nesta obra todos os desejos conservadores de ordem econômica, política e social, foram amalgamados por e através de um sentimento messiânico e salvacionista de redenção da “pátria e da família brasileiras”. Qualquer ato de covardia desleal, traição, omissão, dedo-durismo, é justificado por esta tarefa auto-outorgada pelos golpistas: vale absolutamente tudo – dedo-no-olho, chute no saco, golpe por trás – na “difícil missão do resgate da ordem e do progresso”.
Nessa conta da sujeira cultural que vamos levar muitas décadas para recuperar depois que este maremoto de merda for removido, o dedodurismo figura fácil, fácil, como a última moda. É espantoso o número de dedoduros em plena atividade, usando as mais sofisticadas formas de deduragem, cada um oferecendo mais do que o outro para livrar a própria cara. Ah! Não importa prova, fonte, origem, que se foda, o que se quer mais é tirar o seu da reta, entregar primeiro antes que algum dedo duro mais rápido na dedoduragem o atinja em pleno vôo.
Sob a bandeira mais do que legitima de luta contra a corrupção, naturaliza-se o instituto cultural da dedoduragem anônima, premiada, distinguida, festejada, e saudada com todas as perversidades que abriga. A reforma política estruturalmente necessária para o fim da corrupção nem se vislumbra no horizonte mais longínquo.
O judiciário, protagonista da cena justiceira, usa táticas de convencimento e repressão dignas de fazer inveja ao gangsterismo.
A Lei e a Espada. A toga substituindo o quepe de cinquenta e tantos anos atrás numa sociedade policialesca, judicializada, ghetificada, violentamente individualista e perversamente pragmática. É o resultado da escandalosa, fascista e cínica luta pela manutenção dos privilégios seculares e aristocráticos e que foram só ligeiramente arranhados nesta década e meia de governos se não tão populares assim, pelo menos mais avançados do que a mediocridade que nos batizou nestes 500 e tantos anos.
Neste espaço cênico apertado se movem não só os coletivos teatrais, mas também seus primos e assemelhados da dança, do audiovisual, das artes performáticas.
E se movem. Porque os coletivos e as organizações artísticas têm tido um papel fundamental não só na expressão estética do momento, mas também na participação e articulação com os vários setores de resistência da sociedade brasileira.
Não é pra menos. Desde fins do século XX, São Paulo revolucionou os meios do produzir artístico notadamente nas artes cênicas. As produções eventuais, bissextas e devezemquandenárias, ou ainda, produções das tradicionais companhias teatrais de propriedade de atores ou encenadores e que definiam a paisagem teatral foram substituídas pelos coletivos teatrais, ensembles permanentes de artistas-criadores.
Os grupos teatrais, de natureza e atuação públicas conceitualmente, construíram um arcabouço de leis, que rapidamente se tornou insuficiente para atender às necessidades face à multiplicação de conjuntos teatrais por toda a cidade. As praças, as ruas, os espaços alternativos, os espaços cênicos arquitetados, ocupados, programados pelos grupos e as próprias salas de espetáculo tradicionais se afirmaram em tribunas livres. As questões comunitárias, sociais e políticas, as grandes questões humanistas são a matéria prima destas dramaturgias.
A arte cênica se afirma e se reafirma cotidianamente em cada plaga da cidade, em cada buraco, invadindo e ocupando espaços porque é ofício, técnica e excelência na contramão do entretenimento fácil e alienante.
Nesta festa dionisíaca quase anônima, a Arte que interessa é à capela, é uma inconfidência, é subterrânea, viral e sistêmica. Não há antídoto contra ela, porque ela não é combate, batalha, zona de guerra. Ela não se reduz! Também não é oração, nem prece, porque é a celebração da vida de todos os dias, lugares, ruas e praças. Longa caminhada. Nos últimos tempos, a cena sem deixar de ser plural ganhou músculos, mais coletiva ainda. E é coadjuvante e protagonista no refazimento e na reinvenção da radicalidade.
De alguma forma sutil, o desafio do avanço, penso eu, no campo da estética passa pela percepção de que a judicialização é uma sereia também para nós, o que exige o auto- questionamento traduzido em uma cena paradoxal e rigorosamente épica. Procedimentos de negação, ou em aparência politicamente incorretos, também são estratégias de afirmação de humanidades, justamente pela escatologia apocalíptica que carregam. A cena dialética supera a doutrina jesuítica, pai e mãe de uma suposta nobreza da cena, que gostando ou não é nossa origem e gênese.
Assim, para o avanço da justiça da linguagem não dá para abdicar não só de Plínio Marcos e Nélson Rodrigues, mas também de Bertolt Brecht, Molière, Shakespeare e tantos outros que se arriscaram na consecução da liberdade sem adjetivos.
Enfim, caminhamos muito. Para os que pensavam que tudo se resumia à Rouanet, às mídias, à meritocracia, ao livre mercado, azar, não contavam com isso. Não estava em nenhum pé de página do roteiro. Assistiram muita telenovela, muito jornal nacional. Calcularam mal, o tempo está sendo costurado de outra forma.
* Marco Antonio Rodrigues | Encenador
Texto original em português do Brasil
Publicado originalmente no Portal “O megafone”, da Cooperativa Paulista de Teatro