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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Cancelar a dívida para recuperar o controle

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Quase 150 economistas de treze países europeus, incluindo o francês Thomas Piketty, o ex-ministro belga Paul Magnette, o ex-comissário europeu Laszlo Andor e o conselheiro de estado Francisco Louçã, assinaram um apelo ao cancelamento das dívidas públicas detidas pelo Banco Central Europeu, publicado, no início deste mês, em vários jornais europeus, com o objectivo de facilitar a reconstrução social e ecológica da Europa no período pós-covid-19.

Após a acalmia da crise do euro, vivida no início da segunda década deste século e em repercussão da crise despoletada pelo subprime norte-americano, este debate útil e saudável sobre a questão do cancelamento da dívida europeia tem vindo a ganhar novo ímpeto em países europeus como a França, a Itália, o Luxemburgo e a Bélgica, mas também nas instituições europeias e até em alguns ministérios das finanças da Zona Euro.

Antecipando já a ameaça que paira sobre a Zona Euro no período pós-covid-19, as questões monetárias estão a voltar ao centro do debate público, tanto mais que é cada vez mais claro que o BCE detém quase ¼ da dívida europeia e que o euro deixou de ser uma construção abstracta afastada da deliberação colectiva e confiada a um banco central independente do poder político, para passar a estar estritamente dependente dos mercados financeiros.

Para contrariar a absurda necessidade de se refinanciar uma dívida detida pelo banco central da moeda em que ela é titulada, propõem a eliminação daquela percentagem da dívida mediante o compromisso dos estados europeus direccionarem os montantes assim libertados para um plano de recuperação ecológica e social que ajude a sanar os graves danos sociais, culturais e económicos que a crise sanitária da covid-19 está a provocar e contestam a ideia da sua impraticabilidade ou do seu ineditismo recordando o ocorrido na Conferência de Londres em 1953, quando a Alemanha beneficiou de um perdão de dois terços da sua dívida pública, o que lhe permitiu o regresso a uma via de crescimento e prosperidade económica, mais tarde à integração no projecto da União Europeia e depois ao processo de reunificação alcançado no final do século passado.

O montante em causa anda na ordem dos 2,5 biliões de euros (no caso português, a sua aplicação, reduziria a dívida pública em cerca de 68 mil milhões de euros e o seu peso no PIB para cerca de 100%) o que representa um pouco mais que o triplo do montante de 750 mil milhões previsto para o Fundo de Recuperação com o qual se pretende apoiar os estados europeus no processo de recuperação da crise económica provocada pela covid-19.

Uma primeira e pronta crítica à ideia veio do italiano Fabio Panetta, membro do Conselho Executivo do BCE, que, esquecendo o axioma avançado pelos signatários da proposta de que pagar uma dívida ao BCE equivale a pagar um dívida a si próprio, classificou a ideia de arriscada, por poder induzir uma perca de confiança na moeda, e inútil, face às baixas taxas de juro a que a dívida é actualmente negociada, numa clara confusão entre o valor nominal da dívida (aquele a que são pagos juros e capital) e o seu valor de mercado (aquele a que a dívida é transaccionada entre os investidores e que reflecte, naturalmente, as taxas de juro de cada momento).

Mais pragmática é a argumentação da Presidente do BCE e ex-Directora-geral do FMI, a francesa Christine Lagarde, que defendeu em Novembro do ano passado, que o perdão de dívida é proibido pelos tratados europeus, esquecendo, porém, que os tratados são fruto de acordos políticos conjunturais e, de modo algum, argumentos invocáveis num debate que se quer técnico, sério e construtivo.

Contrariando precisamente o dogma da proibição inscrita nos tratados, os autores da proposta lembram que o BCE poderá até imprimir dinheiro para compensar as perdas (como está previsto no Protocolo 4 anexo ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), que o cancelamento não pode ser proibido na medida em que qualquer instituição financeira pode eliminar (write-off) as suas dívidas e que o tão vilipendiado e impossível quantitative easing implementado em 2015 por Mario Draghi (o anterior Presidente do BCE) é hoje bem aceite.

Mas a decisão de anulação das dívidas públicas detidas pelo BCE, importante pelo alívio que trará aos estados-membro e aos seus cidadãos, deverá ser acompanhada de outras medidas necessárias à correcção das limitações e disfuncionalidades da moeda única, a começar pela interdição do financiamento directo aos estados-membro, que a aproximem do modelo de funcionamento do dólar, do yuan, da libra e do yen (só para referir as moedas das economias com as quais a Europa concorre directamente) e constituam um sinal decisivo da vontade da União Europeia de retomar o controle do seu destino e de reformular a política fiscal europeia.

Esta questão, cujo debate se agudizou na última década com a crise das dívidas europeias, continua em aberto e não tardará que recupere a sua acuidade com o regresso dos apelos às políticas de austeridade, logo que as principais economias dêem os primeiros sinais de recuperação da actual crise.


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