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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

As canções da pandemia: metáforas e emoções

Os espanhóis cantaram juntos durante a pandemia. Canções antigas e novas tornaram-se símbolo da esperança diante do confinamento e medo da morte. Ouça as metáforas mais comuns vividas naquelas canções.

por Laura Filardo-Lhamas, Inês Olza, Iraide Ibarretxe-Antuñano, Paula Perez Sobrinho e Reyes Llopis-Garcia, em The Conversation | Tradução de Cezar Xavier

Muito se tem escrito sobre as características discursivas da resposta social e política à pandemia do coronavírus. No entanto, apesar da crescente importância da música durante a pandemia e de seu significativo benefício para o bem-estar emocional das pessoas durante o confinamento, poucos estudos se concentraram em explicar as características discursivas desse tipo de resposta cultural.

Se, como sugere um artigo do departamento de comunicação das Nações Unidas, “a música faz a alma feliz”, como soou a pandemia e em que medida ela nos ajudou a lidar? O que algumas das músicas tocadas durante a primeira e a segunda onda da pandemia na Espanha têm em comum? Por que algumas das compilações de músicas sobre a pandemia não incluem apenas músicas novas como “Los Abrazos Prohibidos” de Vetusta Morla ou “A par de metros de você” do Funambulista, mas também incluem músicas como “ I will resist ”, em sua versão 2020, ou “ Ao seu lado” (1995) de Os Segredos?

Juntamente com outras estratégias linguísticas, o estudo das metáforas conceituais permite explicar como se fala da pandemia nessas respostas musicais. Quando falamos de metáfora, os linguistas não estão se referindo a um uso ornamental da linguagem, mas a um mecanismo de cognição que nos permite estabelecer correspondências entre diferentes quadros de conhecimento, ou seja, entre o que sabemos e pensamos sobre diferentes espaços da realidade (por exemplo, entre a pandemia e outros espaços de vivência).

Essas correspondências entre domínios conceituais não só funcionam graças ao conhecimento compartilhado entre os participantes do ato comunicativo, mas também, como vários estudos demonstraram, podem gerar uma variedade de emoções. Embora durante as primeiras ondas da pandemia, a investigação linguística tenha sublinhado o poder persuasivo da metáfora (fundamentalmente em diferentes tipos de comunicação sociopolítica), neste artigo reunimos as primeiras conclusões de um estudo sobre o tipo de metáforas que encontramos em diferentes músicas da pandemia.

Sairemos e será diferente
Lembraremos o que aconteceu
Será como terminar um livro
Que alargou seu coração
Vamos dançar Vamos
rir com qualquer um
Vamos fazer amor
Olhando as estrelas
Lembraremos do degelo
Aplausos daquela varanda
Contaremos aos novos
O que um dia nos aconteceu
Ter que esperar
a moeda virar
Fazendo do amor uma bandeira
Você pode dizer
Que viu tantos heróis sem suas capas por perto
Que não poder nos tocar nos ajudou a sentir que você está lá
Me dizendo que vamos vencer
A alguns metros de você
Procurando por você na minha música
Feche seus olhos e agora voe, voe, voe, voe
A alguns metros de você
Procurando por você na minha música
Feche seus olhos e agora voe, voe, voe, voe
Sairemos e será diferente
Melhor do que antes
Caminharemos por instinto
Ouvindo a intuição
Deixar-se ir
Tirar
Saber olhar
de outra forma
Você pode dizer
que viu tantos heróis sem suas capas por aí
Pintaram arco-íris que vieram dizer
Que vai ficar tudo bem, que tudo acontece e vamos vencer
A alguns metros de você
Procurando por você na minha música
Feche seus olhos e agora voe, voe, voe, voe
A alguns metros de você
Procurando por você na minha música
Feche seus olhos e agora voe, voe, voe, voe
É sempre paz
O que resta da tempestade
E algo para contar
A alguns metros de você
Procurando por você na minha música
Feche seus olhos e agora voe, voe, voe, voe

Por que não podemos “resistir” a certas músicas?

Se pensarmos na música mais usada pelos espanhóis durante o confinamento de 2020, é bem provável que venha à mente a versão de 2020 de “Resistiré” (lançada originalmente pelo Dynamic Duo em 1988). O estudo das metáforas como mecanismos cognitivos que encontramos nesta canção permite-nos explicar porque “Resistiré” se tornou, segundo um dos seus compositores , “um grito de revolta perante a adversidade”. Nesta música, podem ser encontrados vários quadros cognitivos fundamentais, alguns dos quais têm sido usados ​​com frequência para falar sobre diferentes doenças, como o câncer.

Nas estrofes, quando a adversidade é descrita, vemos referências ao JOGO (“quando eu perco todas as partidas”, “quando minha moeda dá coroa”), à JORNADA (“quando as saídas estão fechadas para mim” ) ou FORÇAS NATURAIS (“e embora os ventos da vida soprem com força”). A ativação desses quadros permite conceituar a adversidade (que no contexto do ano de 2020 é equiparada à pandemia de covid) como algo negativo.

No entanto, o refrão da música é caracterizado por uma reação de força diante da adversidade, daí surge uma série de diferentes enquadramentos ou domínios, incluindo o da GUERRA (“Vou resistir”, “Vou resistir aos golpes e vou nunca se renda”) como forma de incardinar a luta, ou a VERTICALIDADE como forma de controlar a situação (“de pé contra tudo”, “sou como a cana que se dobra, mas permanece sempre de pé”). Por meio desses quadros, enfatiza-se uma atitude não apenas positiva e resiliente, mas também de determinação ativa diante da ameaça do vírus. Essa “canção metafórica” à ação, de fato, é o que nos permite explicar a ligação emocional dos ouvintes com as múltiplas recontextualizações da canção como um hino de resistência diante de diferentes formas de adversidade.

Quando você perde todos os jogos
Quando dormir com a solidão
Quando as saídas estão fechadas
E a noite não me deixa em paz
Quando você sente medo do silêncio
Quando é difícil ficar de pé
Quando as memórias se revoltam
E me coloque contra a parede
Eu vou resistir, de pé contra tudo
Vou virar ferro para sustentar a pele
E embora os ventos da vida soprem fortes
Eu sou como a cana que se dobra,
Mas sempre fica
Eu vou resistir, para continuar
vivendo eu vou levar os golpes e nunca vou desistir
E mesmo que meus sonhos se partam em pedaços
Resistirei, resistirei.
Quando o mundo perde toda a magia
quando meu amigo sou eu
Quando a nostalgia me apunhala
E nem reconhece minha voz
Quando a loucura me ameaça
Quando minha moeda vem cruzar
Quando o diabo passa a fatura
Ou se eu sentir sua falta
Eu resistirei em pé contra tudo,
Vou virar ferro para sustentar a pele,
E embora os ventos da vida soprem com força,
Eu sou como a cana que se dobra
Mas está sempre de pé
Resistirei a continuar vivendo,
vou suportar os golpes
E eu nunca vou desistir
E mesmo que meus sonhos se partam em pedaços
Eu vou resistir, eu vou resistir

E nas novas músicas?

Mas nem tudo é reciclagem e recontextualização! Esta pandemia também nos deixou novas criações nas quais, além disso, uma nova “linguagem pandêmica” pode ser apreciada. Na maioria dessas músicas, essa nova linguagem se manifesta mais na parte visual do que na própria letra, em que as referências da pandemia se reduzem a referências diretas ao estar em casa, aos aplausos das “oito horas” ou ao desejo para um retorno ao antigo normal.

Embora a literalidade, tanto na letra quanto na imagem, seja abundante nas novas músicas, há algumas novas composições musicais nas quais as conceituações metafóricas mais originais da pandemia são marcantes. Nesse sentido, essas “novas” metáforas são usadas, antes de tudo, para evocar o contexto pandêmico do confinamento. Um exemplo ilustrativo é a referência aos “pássaros engaiolados” na canção de Rozalén, que não só descreve o fato de permanecer em um lugar confinado, mas também ativa as emoções associadas à falta de liberdade e enfatiza a possibilidade esperançosa de sair daquela situação.

Quando eu sair disso, eu vou correr para encontrar
Eu vou te dizer, com meus olhos, o quanto eu sinto sua falta
Mantenha todos os abraços e beijos em uma jarra
Pois quando a tristeza e o medo estão amarrados na alma
Eu estarei diante de minha avó e de joelhos
Vou me desculpar pelas vezes que
Eu negligenciei Vamos brindar a quem partiu sem dizer adeus
De novo de novo
Mas, enquanto os pássaros assombram as casas dos ninhos
Uma primavera radiante se arrasta
Eu consertei meus tecidos quebrados com agulha e linha
Eu me olhei, valorizei, vivi
Somos pássaros engaiolados
Com tanta vontade de voar
Que esquecemos que neste remanso
Você também pode ver a vida passar
Quando as gaiolas queimam
E levante-se novamente
cortina sempre lembre-se da lição
E este será um mundo melhor
Quando eu sair dessa, vá corrigindo para te aplaudir
Eu vou sorrir, vou agradecer quem cuida de mim
Ninguém se atreverá a zombar do que é importante
A qualidade da saúde será intocável
Eu não vou ficar tão bravo com quem atira ódio
É tempo de que o estrangeiro e o próprio sejam igualmente
espalhar minha vontade de viver e folhear minha alegria
construir, construir
Mas, enquanto o céu e a terra desfrutam de uma pausa
Pequenos animais reconquistam cantos perdidos
Eu bebi sozinho, devagar, um copo de vinho
Eu voei com um livro, eu vivi
Somos pássaros engaiolados
Com tanta vontade de voar
Que esquecemos que neste remanso
Você também pode ver a vida passar
Quando as gaiolas queimam
E levante-se novamente
cortina sempre lembre-se da lição
E este será um mundo melhor
Quando eu sair dessa, vou correr para te abraçar

Em segundo lugar, a pandemia serviu de fonte para a criação de novos quadros metafóricos, como se vê em “Los Abrazos Prohibidos” de Vetusta Morla, inteiramente dedicado aos profissionais de saúde. Essa música destaca o papel de cuidado dos sanitaristas, descritos como “anjos verdes” e não tanto quanto os onipresentes “soldados” ou “guerreiros” daqueles primeiros meses da pandemia.

Essa ênfase se torna ainda mais extraordinária e profunda com o próprio vídeo. Aqui, destaca-se uma das cenas mais poderosas desta criação: quando os profissionais de saúde retiram os seus equipamentos de proteção. Essas cenas adicionam uma faceta emocional chocante ao revelar literalmente a humanidade e a individualidade desses profissionais. Não são mais “apenas” sanitaristas e, ao tirarem óculos, epis e máscaras – que os tornam indistinguíveis uns dos outros – as pessoas vão surgindo. É então que recebem os aplausos visuais e virtuais (ou seja, distanciados) das diferentes vozes que cantam a música, ativando assim o quadro metafórico do ABRAÇO a partir do APLAUSO: distanciado mas em gratidão emocional.

Pelos anjos das alas verdes das salas de cirurgia
Para os anjos de asas brancas do hospital
Para quem faz o verbo cuidar, sua bandeira e sua casa
E eles lutam porque ninguém morre sozinho
Para aquelas sentinelas que não dormem
Para que o paciente sonhe que vai acordar
Sem temer seu medo e usar sua pele como escudo
Movendo as macas do perigo como uma valsa
Para aqueles que fazem o trabalho sujo
O trabalho mais lindo do mundo
E eles pintam a escuridão de azul
Todas as noites aplaudimos nossas varandas
A morte foge com seus dragões Ficamos calados
para silenciar mais um dia
Jamais esqueceremos seu exemplo
Jamais esqueceremos a dedicação
Jamais esqueceremos o esforço
Seu amor é nossa inspiração
Para aqueles que nunca olham para o relógio enquanto curam
Para aqueles que fazem suas as feridas dos outros
Para quem merece os abraços proibidos
E eles te colocam na cova dos leões, sem olhar para trás
Para aqueles que fazem o trabalho sujo
O trabalho mais lindo do mundo
E eles pintam e pintam a escuridão de azul
Todas as noites aplaudimos nossas varandas
A morte foge com seus dragões Ficamos calados
a boca para calar mais um dia
Porque vocês já ganharam um ao outro
O aplauso mais longo do mundo
respeito e dignidade
Toda vez que saímos para as varandas
O medo foge com sua
dragões E silenciamos o silêncio mais um dia
Sobreviventes sim, droga (mais um dia)
Eu nunca vou me cansar de comemorar

Então, é natural tropeçar na mesma metáfora novamente?

A análise das metáforas subjacentes a várias das canções que nos acompanharam durante a pandemia mostra como a nossa experiência imediata influencia na hora de ativar e interpretar certos quadros partilhados de conhecimento, que são influenciados pelo contexto em que são utilizados.

Estudar metáforas em outros gêneros discursivos que não o discurso político revela que as respostas culturais não se concentram apenas em apelar ao medo (que permeou outras respostas públicas), mas sobretudo em ativar outros tipos de emoções mais positivas voltadas para o futuro, mais esperançosas.

A utilização de alguns dos referenciais mencionados, como o de pássaros engaiolados, viagens, verticalidade ou aplausos permitem conceituar, através de experiências socialmente reconhecíveis, as emoções e reações que, como sociedade, tivemos e ainda temos antes da pandemia.

E é justamente essa compreensão de momentos, emoções e vivências coletivas que nos permite ver por que voltamos a tropeçar (e sem dúvida voltaremos a tropeçar) com a mesma música, com suas mesmas letras e suas mesmas imagens. Então, longe de ser um defeito maniqueísta na humanidade, é simplesmente humano. No final das contas é natural, pois o que nos une sempre terá mais força (e mais seguidores) do que o que nos separa e divide.


por Laura Filardo-Lhamas, Inês Olza, Iraide Ibarretxe-Antuñano, Paula Perez Sobrinho e Reyes Llopis-Garcia, em The Conversation |  Texto em português do Brasil, com tradução de Cezar Xavier

Exclusivo Editorial PV / Tornado

The Conversation

  • Laura Filardo-Lhamas Professora universitária em Linguística e Língua Inglesa, Universidade de Valladolid
  • Inês Olza Investigadora do grupo ‘Cultura e Identidade Emocional’ (CEMID) do Instituto de Cultura e Sociedade (ICS), Universidade de Navarra
  • Iraide Ibarretxe-Antuñano Professora de Linguística Geral, Universidade de Zaragoza
  • Paula Perez Sobrinho Professora de Filologias Modernas, Universidade de La Rioja
  • Reyes Llopis-Garcia Professora sênior de Espanhol, Columbia University

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