1896 – 1958
Destacado casapiano e desportista, Cândido de Oliveira foi um corajoso antifascista, íntegro e solidário, cuja vida não se resume à de jogador, treinador, dirigente e seleccionador de futebol, ou de jornalista desportivo. É difícil olhar separadamente todas estas facetas no seu percurso de cidadão. É talvez a figura mais importante do futebol português do século XX, um nome omnipresente na história dessa modalidade desportiva, que é lembrado sempre que se refere a Supertaça organizada pela Federação Portuguesa de Futebol. Foi também fundador, em 1945, do jornal A Bola, mas antes tinha passado um longo período nas prisões políticas fascistas e no Campo de Concentração do Tarrafal. Grande figura humana, um democrata convicto que tomou desassombradas posições públicas contra os regimes de Hitler, de Mussolini, de Franco e Salazar. A sua coragem moral só teve paralelo na sua coragem física.
Biografia
Cândido Fernandes Plácido de Oliveira nasceu em Fronteira, distrito de Portalegre, a 24 de Setembro de 1896, e entrou para a Casa Pia de Lisboa em 1905, depois de ter ficado órfão. Bom aluno, vivia ainda na Casa Pia quando começou a demonstrar paixão pelo futebol e enorme aptidão para a prática desportiva. Terá sido também nessa instituição que adquiriu uma educação de fortes valores humanistas. Ao aperceber-se das injustiças do mundo, não tardou a dedicar-se a causas sociais.
Revelando grande capacidade como futebolista, começou a jogar no Benfica em 1914/15 e manteve-se de águia ao peito até 1920. Nesse mesmo ano, funda juntamente com outros casapianos o Clube Atlético Casa Pia, um velho sonho de vários alunos e ex-alunos dessa instituição. Depois, iria ser ele o primeiro «capitão» da Selecção Nacional, no primeiro jogo disputado com a Espanha (Madrid, em 1921).
Por várias vezes ocupou o cargo de Seleccionador nacional (foi com ele o primeiro êxito da Selecção Nacional, nos Jogos Olímpicos de Amesterdão, em 1928). Foi também treinador do Sporting Clube de Portugal, no tempo dos “cinco violinos”, vencendo o campeonato nacional da I Divisão. Foi ainda treinador da Académica, do Belenenses, do FC Porto e do Atlético; e chegou a orientar o Flamengo, do Brasil, em 1950-51.
Entretanto, ainda na década de 20, Cândido de Oliveira faz reportagens de futebol no jornal O Século. Além de jogador, árbitro e seleccionador, iniciara uma carreira de jornalista. Escreveu na “Stadium”, foi director de “Os Sports”, jornalista do “Diário de Lisboa”, do “Diário de Notícias” e do “Século”. Ganhava, então, cada vez maior prestígio na imprensa lisboeta.
De inspector a agente secreto. De prisioneiro a jornalista
Detido pela polícia política (PVDE) em diversas ocasiões, nada o impedia, porém, de continuar a criticar pública e abertamente os regimes de Mussolini, Hitler, Franco e Salazar. Nos anos 40, durante a II Guerra Mundial, quando era Inspector Superior dos Correios de Lisboa (CTT), foi agente secreto para a Inglaterra e seus aliados. Integrou, como agente PAX, a rede inglesa do SOE (Special Operations Exectuive), sendo um dos responsáveis pela montagem de uma rede secreta alternativa de rádio-telegrafistas e pela organização de grupos de resistência activa e passiva, em caso de invasão de Portugal pela Alemanha nazi.
Aos 46 anos, às 5 horas da manhã de 1 de Março de 1942, Cândido de Oliveira foi preso e barbaramente espancado e torturado na polícia política, que lhe partiu quase todos os dentes e lhe abriu uma brecha na cabeça. Permaneceu na prisão de Caxias durante três meses, antes de ser enviado para o Tarrafal, em 20 de Junho de 1942. Aí sofreu as agruras do Campo de Concentração, durante 18 meses, até ser trazido para Lisboa e internado no Hospital Júlio de Matos. Dali, foi sucessivamente conduzido para as prisões do Aljube, de Caxias, e novamente Aljube, até sair em liberdade condicional em Maio de 1944. Sobre os horrores do Campo, Cândido de Oliveira diria no livro “Tarrafal, o pântano da morte”:
«Dentro do Campo não se vive! Aguarda-se a morte! É a morte lenta, mas certa. Apenas uma questão de tempo… […] Uma visita ao Campo confrange. Não se esquece mais. Perdurará na memória como visão horrível – da horrível existência de seres humanos expiando o crime político»[1]
Durante o tempo em que esteve deportado, a rede secreta de rádio-telegrafistas, por si montada, manteve-se quase intacta e em funcionamento. [O facto de viver do lado de fora do Campo e não estar obrigado a trabalhos forçados, permitiu-lhe ser um importante elo de transmissão de informações de fora para dentro, e entre os presos e o exterior, incluindo o continente].
Em 1945 é demitido dos correios telégrafos e telefones (CTT), onde trabalhara longos anos e atingira a elevada função de inspector. Funda, por essa altura, com António Ribeiro dos Reis e Vicente de Melo, o então bi-semanário jornal A Bola, no qual teve o apogeu da sua carreira jornalística – assinando crónicas e artigos modelares, inclusive do ponto de vista literário – , e nele colaboraria até à sua morte.
Já a trabalhar no jornal A Bola, Mestre Cândido de Oliveira, como era carinhosamente tratado, procurou ajudar todos os ex-tarrafalistas e outros companheiros que o procuravam e foram muitos[2]. Deu a este periódico desportivo um importante carácter cultural e oposicionista que perdurou no tempo da Ditadura, sendo vários os elementos da redacção com militância activa clandestina.
Faleceu de pneumonia, em Estocolmo, quando fazia a cobertura jornalística do Campeonato do Mundo de Futebol (1958). Os jornais deram a notícia, referindo-se à sua morte como tendo desaparecido do tablado desportivo a sua figura de maior projecção[3]. Sobre ele escreveu Homero Serpa, seu colega de redacção:
«Cândido foi um cidadão, consciente e coerentemente subversivo. O jovem alentejano, honesto e afável, estudante e desportista, aprendeu com professores de profundos sentimentos humanistas, conviveu com ilustres personalidades do conhecimento e da política, integrou as políticas da cultura e do desporto, meditou a vida e as injustiças que feriam os desprotegidos da sorte nos silêncios monásticos dos claustros manuelinos. Na Cerca da Casa Pia iniciou a aprendizagem do futebol, que era a vergôntea mais forte do desporto nacional»[4]
“Tarrafal, o pântano da morte”
Cândido de Oliveira escreveu «Tarrafal, o pântano da morte», editado postumamente em 1974, com nota prévia de José Magalhães Godinho (com quem conspirara) e capa de Stuart de Carvalhais . Nesse livro, que nunca terá chegado a concluir, elenca, a abrir, os doze nomes que considera como principais responsáveis pela criação e manutenção daquele campo, onde os presos eram sujeitos a um regime de morte lenta; publica os 30 nomes dos que ali morreram, depois de há muito terem cumprido a pena a que tinham sido condenados; e refuta a designação de o Tarrafal se tratar de uma Colónia Penal: «Com a sua construção, havia a certeza de que a maioria dos deportados seria dizimada pela biliosa ou ficaria com a saúde tão abalada pelo paludismo crónico que, regressando à Metrópole, não teriam vontade de prosseguir na actividade antifascista!».
Pelo seu papel no futebol português foi dado o seu nome à Supertaça, instituída pela Federação Portuguesa de Futebol[5].
Condecorado pelos ingleses, recebeu em Portugal, a título póstumo, em 1990, a Grã Cruz da Ordem de Mérito.
Em 2000, o jornalista Homero Serpa, seu colega, escreve “Cândido de Oliveira, uma biografia”. Editorial Caminho, Lisboa, 2000[6].
[1] “Tarrafal, o pântano da morte” (1974). Desconhecendo-se o percurso do manuscrito de Cândido de Oliveira antes de se transformar em livro, nota-se que ele foi redigido com base no que observou enquanto lá esteve, mas também através de informações posteriores, apresentando dados precisos e até estatísticas, constituindo uma detalhada e fundamentada denúncia do regime que alimentava os horrores ali infligidos e, simultaneamente, uma homenagem à dignidade com que a família tarrafalista procurou sobreviver e resistir. Cândido de Oliveira desmonta o decreto n.º 26.539, de 23 de Abril de 1936, que criou o Campo, descrevendo-o como sendo, quanto ao clima: «o pior ponto do arquipélago. Não tem água potável; não tem comunicações com o interior da ilha, exceptuando a estrada expressamente construída para uma ligação directa com a cidade da Praia; não tem linhas de navegação; e nada ali se produz a não ser milho – e quando chove!»
[2] Foi sempre muito solidário com os companheiros, entre os quais Augusto Valdez e Miguel Wager Russell.
[3]«Granjeava grande popularidade perfeitamente justificada pelos seu dotes intelectuais e pelo encanto do seu magnífico trato pessoal. (…) Em todos os cargos de futebol a personalidade de Cândido Oliveira afirmava-se devido aos vastos conhecimentos da matéria e à maneira brilhante como esses dados eram expostos»
[4] Homero Serpa, Cândido de Oliveira, uma biografia. Editorial Caminho, Lisboa, 2000.
[5] A Supertaça Cândido de Oliveira, também conhecida como Supertaça de Portugal ou apenas Supertaça, é um troféu que desde 1979 se disputa todos os anos.
[6]«Escrevi este livro, aliciado pelo tema que as minhas investigações sobre a vida de Cândido de Oliveira empolgaram. Terminada a tarefa das consultas na Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional, nos arquivos de A Bola, e avaliadas as entrevistas com quem conheceu de perto mestre Cândido, deitei-me à escrita com alvoraçado empenho. (…) Pretendo que esta biografia de Cândido de Oliveira seja o romance verídico da sua vida. Nesta intenção, desvendo o que sempre me pareceu um estranho tabu. A intervenção activa de Cândido na política nacional, com repercussões internacionais, transcendeu a lírica conspiraçãozinha à mesa do café.»
Biografia de Helena Pato em co-autoria com João Esteves.
Dados biográficos:
- João Pedro Silveira, em Cândido de Oliveira: o Mestre, em zerozero.pt
- Cândido de Oliveira em Memória Portuguesa
- Ficha da PVDE
- Cândido de Oliveira – Uma biografia