“Canto Interior de uma Noite Fantástica“, poema de António Jacinto
Canto Interior de uma Noite Fantástica
Sereno, mas resoluto
aqui estou – eu mesmo! – gritando desvairado
que há um fim por que luto
e me impede de passar ao outro ladoAnte esta passagem de nível
nada de fáceis transposições
Do lado de cá – pareça embora incrível
é que me meço: princípio e fim das multidõesNão quero tudo quanto me prometam aliciantes
Nada quero, se para mim nada peço,
o meu desejar é outro – o meu desejo é antes
o desejo dos muitos com que me pareçoQuem quiser que venha comigo
nesta jornada terrena, humana e sincera
E se for só – ainda assim prossigo
num mar de tumulto impelido os remos sem galeraQue venham glaucas ondas em voragem
que ardam fogos infernais
que até os répteis soltem seus instintos
e me envolvam traiçoeiras e viscososQue me derrubem e arremessem ao chão
que espezinhem meu corpo já cansado
à tortura e ao chicote ainda responderei não
e a cada queda – de novo serei alevantadoE não transporei a linha divisória
entre o meu e o outro caminho
Mesmo que a minha luta não tenha glória
é no campo de combate que alinhoAssim continuarei a lutar, ai a lutar!
num perigoso mar de paixões e escolhos
e – companheiros – se neste sofrer me virdes choras
não acrediteis em vossos olhos!
Luanda, 31-7-1952
António Jacinto,
in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban II
Poema e biografia