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Sábado, Novembro 23, 2024

Cantos de Railídia

Paraense de Almeirim, município no baixo Amazonas, Pará, a cantora Railídia conta que foi criada em Altamira, para onde os pais foram em busca de trabalho com a abertura da Transamazônica.

“Tenho muito amor por Altamira, uma cidade que se transformou em um caldeirão com a construção da hidrelétrica de Belo Monte e que precisa de contrapartidas do governo e mais atenção por parte da esquerda”.

Nesta entrevista ela fala sobre sua formação musical, suas apresentações na capital paulista, o Carnaval e seu álbum Cangalha.

Você está em São Paulo há 22 anos, mas antes morou em Belém, onde cursou jornalismo e conheceu o músico, advogado e filósofo paulistano Fernando Szegeri, com quem foi casada e teve uma filha.

Vivo em São Paulo, mas meu olhar e meu espírito são amazônicos. O Fernando é responsável pela minha carreira de cantora, foi meu maior incentivador. Até hoje mantemos projetos musicais conjuntos, como a roda de samba Inimigos do Batente. Em dezembro de 2018, fizemos o show “Os passionais”, comemorando 25 anos de parceria.

Com o Inimigos do Batente, você se apresenta duas vezes por mês no bar Ó do Borogodó, na Vila Madalena, em Pinheiros, a partir das 22h30. E para este Carnaval, a agenda está cheia?

Vou cantar em 15 de fevereiro no bloco Tô no Vermelho, organizado por militantes do PCdoB e integrantes de movimentos sociais, com saída às 15h no centro de São Paulo. Em 16 de fevereiro, a partir das 10h, cantarei no bloco do Ó, um cortejo com marchinhas e marchas-ranchos pelas ruas da Vila Madalena. Dia 22 de fevereiro, no Sesc São José dos Campos, às 17h, participo do show “Bloco do Ó canta as divas do Carnaval”, juntamente com as cantoras Paula Sanches e Juliana Amaral, que estarão também comigo, dia 25, 23h, no baile de Carnaval do Ó do Borogodó.

O Carnaval é, portanto, sempre um momento muito importante no seu trabalho com música.

Estas apresentações são o resultado de vários anos dedicados a acumular um repertório de músicas de carnaval, especialmente marchinhas, marchas-rancho, frevos e sambas de carnaval, e realizar apresentações em bailes, blocos e unidades do Sesc. A ideia é apresentar a diversidade do chamado Carnaval clássico e relembrar composições que atravessam gerações. Muitas destas músicas eu aprendi pequena, quando mamãe levava a mim e minha irmã para os bailes infantis.

Quem são os músicos que te acompanham e como são os repertórios?

Faço parte da roda de samba Inimigos do Batente, desde 1999. Ao lado do Fernando Szegeri e do percussionista e produtor Paulinho Timor, fundamos este grupo que realiza projetos de rodas de samba em diversos bairros de São Paulo e teve em suas formações, ao longo dos anos, músicos maravilhosos do samba de São Paulo, como o Mestre Cebolinha, que nos deixou em 2018. A roda dos Inimigos é um grupo de oito integrantes. Então, eu me acostumei a cantar com muitos instrumentistas. Sempre fiz clássicos do samba, mas tentando cantar músicas menos conhecidas. Se a gente canta “Brasil Pandeiro”, do Assis Valente, a gente também canta do mesmo autor a música “Amanhã eu dou”. Sempre gostei muito do repertório dos discos da Cristina Buarque, da Clara Nunes e das velhas guardas da Portela e Mangueira.

Os Inimigos também sempre valorizaram músicas autorais?

Sim. É uma roda aberta às novidades e às diversas expressões do samba. Por volta de 2004, participei por quatro anos do Bando Afromacarrônico, com Kiko Dinucci e Douglas Germano. Nos apresentávamos no Ó do Borogodó, com um repertório em que predominavam as músicas dos dois: ali se reinventavam os sambas, se trazia outros autores para a roda, como Itamar Assunção e Raul Torres, eu também cantava algumas coisas do Pará e a Dulce Monteiro trazia músicas dela e de outros compositores que ela gostava.

Esta experiência te inspirou a ter também um trabalho próprio mais autoral?

À força ritualística e de sociabilidade, sem falar no imenso repertório de samba a que tive acesso através dos Inimigos do Batente, veio se juntar a inventividade que o Afromacarrônico respirava. Acho que este caldeirão cultural pode ter me levado a pensar em um trabalho musical mais pessoal. Daí fui trazendo mais autores do Pará para o meu repertório, como o maestro Waldemar Henrique, e aumentando o repertório autoral. Quando conheci o violonista Paulo Godoy, o trabalho de sambas, batuques e cantorias foi ganhando forma e desembocou no repertório de Cangalha, no show e no cd. Cangalha teve uma banda fantástica, que maturou alguns anos este repertório.

Fale sobre este trabalho.

Kiko Dinucci, Douglas Germano e Inimigos do Batente participam do cd Cangalha, o que foi uma honra pra mim. O disco é bem percussivo e tem muito peso instrumental. Músicos da roda de samba e amigos da cena indie paulista se encontraram neste trabalho. Foi muito rico e deixou o cd muito vivo, quente. Tenho sorte de ter convivido musicalmente com músicos de tantas origens estéticas e gêneros, o que me fez estar sempre atenta e arejada para os movimentos que aparecem.

Cangalha foi lançado em 2016 por financiamento coletivo (crowdfunding) pelo kickante. Como acessá-lo?

O público pode ouvir Cangalha em todas as plataformas digitais e quem não tiver acesso também pode acessar pelo Youtube. Pretendemos fazer mais cópias para disponibilizar para as pessoas que queiram comprar. Sei que em Belém tem na loja Ná Figueiredo e, em São Paulo, o Fran dos cds e dvds, que tem um loja no centro da cidade, tem algumas cópias.

Cangalha é uma espécie de retrospectiva de sua carreira musical?

Exatamente. Ele contem músicas que eu cantava há muito tempo e ficaram identificadas comigo como, por exemplo, o partido alto Sandália de Prata (Bebeto di São João e David Correia), que tem uma única gravação. O cd apresenta faixas longas com este espírito da roda de samba que repete e emenda uma música na outra. Digo que é um cd de ritmos brasileiros. Lá tem tudo o que eu sou: o partido alto, a música religiosa afro-brasileira, o carnaval, a canção amazônica aboleirada, o samba de São Paulo, o boi bumbá do Pará (música ensinada pela minha mãe), o marabaixo, músicas minhas, canções autorais de parceiros, homenagens, participações muito afetivas e de personalidade artística marcante.

É também um cd de alma feminina?

Sim, com personagens marcantes como A Louca (Aldir Blanc e Maurício Tapajós), a Madalena (do Marabaixo “Mal de Amor”), a entidade Oiá (de Risca, Faisca Oiá), a mulher que dança e provoca de Flor Negra (outro Marabaixo), Yemanjá (das Doutrinas de Mina) e a própria música que abre o cd “Mourão que não cai” (Douglas Germano) que diz: “Sou Fogo, Sou Rai”. A Rai sou eu mesmo.

Você continuará cantando o Cangalha?

Este ano eu e Paulo vamos exercitar Cangalha em uma formação menor. É sempre maravilhoso voltar a este repertório, que foi criado em um trabalho coletivo com os parceiros Felipe Siles, Koka Pereira, Ed Encarnação, Helio Guadalupe e Paulo Godoy. Não fossem eles e o trabalho dedicado de Stefânia Gola, DarkonVr e Fernando Szegeri, não teria saído assim tão mágico. Neste 2020, Cangalha estará de volta em uma formação menor.

Railídia em frente ao Ó do Borogodó. Foto Joice Aguiar


Tem planos para lançar um novo álbum?

Para este ano, eu e o Paulo Godoy vamos radicalizar o trabalho de voz e violão, tendo como matéria-prima algumas músicas que não entraram em Cangalha e  as criações em música brasileira do Paulo. São sambas, choro, valsa, afoxés, música brasileira muito rica. A minha vontade é gravar um cd cantando as músicas do Paulo. No Cd Cangalha, foram 10 inéditas das 14 músicas que gravamos. Daí olhando ao meu redor vi a produção autoral do Paulo Godoy, com um repertório que me agrada tanto e que ele vem lapidando ao longo dos anos com muita dedicação. Pedi a ele que divida comigo e que nós dois possamos compartilhar este trabalho de duo com o público. Eu me sinto muito inspirada ao me deparar com esta produção de canções e músicas instrumentais e poder dialogar com elas e com o Paulo sobre como vamos interpretá-las. Em 2019 comecei a ganhar mais intimidade com algumas das canções dele, aprendi o samba “Tranquilidade” e aos poucos vamos criando e experimentando um jeito para cada uma delas. Paulo também é meu parceiro em shows desde 2012 e peça fundamental no repertório de Cangalha. Assim como eu, ele acha que cabem neste trabalho de show e cd outras canções, como alguma do maestro Waldemar Henrique, que ensaiamos há tempos e não entraram em Cangalha, como a música Manha Nungara. Ele também gosta de uma marcha-rancho de minha autoria chamada “Ilusão de Carnaval”.

Como se dá o processo de escolha de músicas autorais novas?

Para criar intimidade com a música e selecionar para entrar em um cd ou show eu vou experimentando. Ensaio, canto ao vivo, ouço as gravações, canto mais vezes. A gente cria uma intimidade com as composições. Elas se tornam parte da gente. É um prazer imenso.

Quais os principais desafios de uma artista como você que atua independente das grandes mídias de entretenimento?

Acho que o principal desafio é a disciplina no ofício e mesmo sem as condições materiais, como patrocínio, é preciso desenvolver uma rotina profissional. Eu atuo em duas profissões, como jornalista também, e algumas vezes me vejo dividida. Assim como no jornalismo eu sou a trabalhadora e a empregadora, na música o artista à margem de editais e patrocínios precisa atuar em múltiplos papéis. Mesmo quem conta com edital precisa também batalhar muito. Além de cantar, criar projetos, estudar, ensaiar, é preciso também prospectar lugares para cantar, fazer sua própria maquiagem, cuidar das próprias redes sociais e propaganda, pagar os músicos, fazer a própria assessoria de imprensa.

E paralelo à produção musical você diz que tem uma grande responsabilidade em também atuar como assessora de imprensa, seu primeiro ofício.

O jornalista também é responsável pela memória dos acontecimentos. Em 2019 assessorei os shows do centenário do mestre do pífano Sebastião Biano, trazendo um pouco de visibilidade naquele momento para o trabalho dele, que é um patrimônio nacional. Como cantora, planejo em 2020 chegar aos meios alternativos de comunicação para dar visibilidade ao meu trabalho que traz uma expressão vocal e de pesquisa de repertório forjada na cultura popular. Nos cantos do povo, das rodas de samba, da música que é expressão de revolta e contestação social, dos batuques do norte e do sudeste e nas cantorias brasileiras. De fresta em fresta vamos fazendo a nossa festa e celebrando e fortalecendo a diversidade cultural brasileira que não aparece nos grandes meios.

O que você espera deste 2020 para o povo brasileiro?

Eu tenho paixão pelo povo brasileiro. É uma gente generosa, espirituosa, trabalhadora, que ama a música, as artes e em sua maioria foi ensinado a apenas assistir àqueles que decidem por eles. O atual presidente e seus ministros e as forças que compõem o governo federal radicalizaram esta chaga brasileira, que é manter o povo à distância das decisões. Mas acho que pior ainda é que, através das redes sociais, eles inventaram visões de mundo e preconceitos prontos que enganaram muita gente e foram ao encontro do que uma boa parte pensa mesmo.

Como se combate isso?

Com a sensibilização das pessoas. Garantir políticas públicas que promovam o acesso à cultura, à saúde, à educação, à moradia e aos direitos trabalhistas também são caminhos para sensibilizar a população. A cultura viveu um ano sob ataque, censura e criminalização promovidas pelo governo Bolsonaro e aliados. A arte, especialmente aquela que mostra a cara do seu povo, provoca empatia, ganha corações e mentes. Para aqueles que oprimem o povo a arte é perigosa por isto criminalizam os artistas e espalham fake News. Por isso é que vivemos um ano em que a omissão é cúmplice daqueles que querem impedir o povo de pensar. Garantir direitos é sensibilizar. Por isso espero que o ano seja de valorização da política e de como ela, se usada com seriedade e responsabilidade, pode combater a desigualdade e a injustiça social.


por Val Gomes | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial Rádio Peão Brasil / Tornado

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