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Domingo, Novembro 3, 2024

Caridade ou Solidariedade

Carlos Ademar
Carlos Ademar
Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia Judiciária

Mestre em História Contemporânea, escritor e professor na Escola da Polícia JudiciáriaÉ imperativo, caros leitores. Quem adequa os princípios às circunstâncias do momento deixa de ser gente de bem porque, pura e simplesmente, não tem princípios.

A ética republicana não se compadece com o conceito de caridade, mas com o da solidariedade. É esta a sua matriz. A caridade, uma prática ambígua nos seus propósitos, tão antiga como o homem, não pode ter lugar numa sociedade que pugna pela cidadania.

Perante a lei, todos os cidadãos são iguais em direitos e deveres e a caridade distorce este princípio basilar de uma sociedade democrática. Quem recebe a esmola, ou se quisermos o apoio proveniente da caridade, não pode deixar de olhar de baixo para cima, para a alma caridosa que dispensa algo que lhe sobra para ficar, no mínimo, de espírito mais tranquilo.

A ética republicana aponta de forma clara para a cidadania. Um pobre não pode ser olhado de cima por alguém que teve a sorte de nascer no seio de uma família mais abastada.

À República incumbe tudo fazer para evitar que esse diferencial motivado pelo acaso na maior parte das situações, não tenha grandes repercussões no quotidiano desses cidadãos, para que a diferença entre os dois não aumente, bem pelo contrário, atinja tendencialmente o equilíbrio.

Compete ao Estado, através da política de impostos, minimizar esse diferencial, através de uma justa redistribuição da riqueza, em função das necessidades de cada um. A República tem que zelar por isso, se quer cumprir cabalmente o tal papel de transformação social que está gravado na sua matriz.

dinisVem isto a propósito de Dinis Esteves, de Paço d´Arcos, uma criança que vai a caminho dos seis anos, cuja família, a partir dos seus 17 meses de vida, deixou de ter o direito a viver em paz; vive os dias em permanente sobressalto, pode dizer-se à beira do precipício que o esgotamento físico e psicológico potencia.

Por essa altura a criança foi acometida por uma doença rara e gravíssima, que lhe condiciona irremediavelmente a vida, bem como a dos seus mais próximos.

Não conheço os pais. A história chegou-me por pessoa amiga e como entendo que um cidadão não pode passar incólume perante situações humanas como esta, dispus-me a falar telefonicamente com a mãe, que me enviou uns tópicos sobre a vida deste menino e a falta de horizontes em que a sua família vive pela ausência de uma resposta cabal por parte das autoridades estatais.

Sem querer alongar muito o historial clínico, sempre direi que a doença atacou o sistema nervoso central da criança, acabando, ao fim de quase três meses de enorme sofrimento, com internamentos, períodos de coma induzido ou profundo, em que chegou a estar no limiar da morte cerebral, os médicos apontaram como responsável de todo o mal, um vírus raríssimo do foro intestinal, de que até à data só havia registo de dois ou três casos na Europa.

Até hoje, passados quatro anos e meio, o Dinis vive com uma traqueostomia, ventilado artificialmente, alimentado por uma PEG (Gastrostomia Endoscópica Percutânea) e tem uma derivação ventrículo-peritoneal devido a uma hidroencefalia que desenvolveu entretanto. Ou seja, sobrevive dependendo de máquinas e do apoio humano praticamente constante, no que respeita à alimentação, aos necessários cuidados de higiene, medicação e também para a monitorização dos aparelhos.

Paralelamente a este quadro já de si assustador para qualquer família, a mãe teve que recorrer à baixa médica, abdicando do trabalho para poder dar assistência ao filho, ficando naturalmente limitada nos seus rendimentos. Acresce que o pai, pouco tempo após se ter manifestado a doença, ficou desempregado e desde então tem vivido uma situação de emprego precário, com a instabilidade inerente, com períodos de maior duração no desemprego do que a trabalhar.

Como se não bastasse, aproxima-se dos 50 anos de idade, o que dificulta muito a sua inserção estável no mercado de trabalho. Para agravar mais esta situação negra, em Abril do ano que vem, a mãe vai ter que regressar ao emprego, o que levará a família a ter que encontrar uma solução para o Dinis, que passará pela contratação de alguém qualificado para assumir os cuidados que o menino necessita enquanto a mãe estiver ausente.

E quem cuida do cuidador? A vida familiar ressentiu-se bastante porque ficou desde então limitada ao domicílio, uma vez que deslocar o Dinis para qualquer lugar implica uma logística difícil de acomodar, que passa por transportar todos os equipamentos de suporte de vida que o menino necessita, ou sejam dois ventiladores, um em funcionamento e outro como reserva – indispensável -, uma garrafa de oxigénio, um aspirador, além dos materiais consumíveis ligados à higiene, as fraldas, as pomadas, os medicamentos e as necessárias mudas de roupa, mais no caso em apreço por razões óbvias.

Qualquer viagem, ainda que pequena, implica uma operação com alguma envergadura, além do risco de vida para o Dinis, que está sempre presente, naturalmente, mas que pode ser agravado em consequência das manobras inerentes às deslocações e acomodação da criança.

Dinis está a entrar na idade de dar início à sua formação escolar. Que condições esta família pode contar por parte do Estado para que o seu filho tenha a instrução que se adeque a casos como o dele? Esta família vive dias terríveis e pior ainda, sem a perspectiva de um raio de luz que amenize a escuridão a curto/médio prazo, bem pelo contrário, como já atrás ficou referido, devido à situação da mãe, que dentro de alguns meses terá forçosamente que interromper a baixa médica, que lhe tem permitido acompanhar 24 sobre 24 horas o seu filho.

Onde irá esta família buscar recursos que lhe permitam fazer face a despesas tão elevadas como sejam as necessárias para a contratação de alguém competente para cuidar de Dinis? Quantas rifas, quantos eventos culturais, desportivos, recreativos, quantos actos de filantropia dos particulares terão de ser realizados para ajudar esta família a conseguir as verbas elevadas necessárias para que nada de essencial falte à criança, a fim de minorar o seu sofrimento?

E essas almas caridosas, amigas ou conhecidas ou amigas de amigas ou de conhecidas, que se deixam comover com a história de Dinis e com o drama em que vive esta família, quanto tempo estarão dispostas a continuar a contribuir? E quando se esgotar esta fonte, porque vai esgotar-se, que fará a família de Dinis? E quantos meninos como o Dinis existem? Quantas famílias como a sua não vivem dramas semelhantes?

Best friends

Não, caros leitores, o Estado não pode fugir às suas responsabilidades. É costume dizer-se que em Portugal pagamos impostos nórdicos para recebermos serviços magrebinos. É também costume os portugueses condenarem mais o Cristiano Ronaldo quando joga menos bem pela selecção, dos que os políticos que gerem mal o dinheiro de todos nós.

E não estarão as duas situações ligadas, a má gestão dos dinheiros públicos com a falta de exigência dos portugueses?

O Estado tem que contribuir para o desiderato que incumbe à República, ao não permitir que dois cidadãos se olhem de baixo para cima ou de cima para baixo, conforme dá ou recebe esmola. Os cidadãos de um regime que pauta pela liberdade e pela democracia pluralista, não são passíveis de serem olhados de cima pelos seus iguais. Só o Estado pode contribuir para que isso não aconteça ao criar as estruturas adequadas a cobrir as necessidades dos que as têm; estruturas que serão criadas, naturalmente, com recurso ao dinheiro de todos nós, que resulta dos impostos cobrados.

Uma sociedade que o cumpra é a verdadeira sociedade solidária. A sociedade solidária dispensa a caridade, que tem de ser considerada uma prática anacrónica. Quase duzentos e cinquenta anos após a Revolução Francesa, que impôs a tríade Liberdade, Fraternidade, Igualdade, mal se compreende que a caridade seja ainda uma prática tão recorrente neste país, e até, pasme-se, tão incentivada.

Só a passividade dos cidadãos gera a inoperância do Estado, e esta, ao longo dos anos, tem contribuído para o desprezo dos verdadeiros valores da República.

É tempo de dizer basta.

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