O cronista político e literário, imortal da Academia Brasileira de Letras, completou 90 anos ontem (14). É muito conhecido por sua ficção (gênero que não pretende mais escrever, segundo declarou) e pela crítica política, mas aqui, excepcionalmente, fala de amor e paixão, faz confidências e expõe o coração de poeta. Trágico.
Num saguão com música ambiente, piano à vista, café frio na garrafa térmica, Carlos Heitor Cony me contou a história, verdadeira, de seu amigo Geraldo, e a sua versão da “história do mundo”, tudo isso tendo como ponto de partida o livro recém-lançado na época, “A Casa do Poeta Trágico”(1997). Cony tinha poucos minutos para mim, conforme explicou, porque logo mais embarcaria de volta ao Rio de Janeiro, onde mora.
Mas nossos poucos minutos viraram uma hora e meia, de conversa rara, deliciosa, que nos arrebatou do cotidiano de compromissos e aborrecimentos, do vôo com hora marcada e do talão de zona azul vencido, para algum plano mais nobre da existência.
Terá sido uma brevíssima paixão?
O cronista político e literário, imortal da Academia Brasileira de Letras, me surpreendeu com suas interpretações do amor — extraídas da prática — e discretas confidências. Quando o tempo se tornou urgente, a despedida foi abrupta como o fim de uma paixão. Mas ele não se esqueceu de pedir, brincando: “Espero que você escreva um bom livro e que não acabe com a minha reputação.”
Foi difícil, para mim, abrir mão de longos trechos de nossa conversa, não porque fossem censuráveis, como ele supôs, mas porque ultrapassaram em muito o objetivo desse livro, falar do amor e da separação. Para Cony, mesmo a paixão, com todo o espaço que ocupa, é menor que a vida e suas implicações.
A paixão desfeita, no livro “A Casa do Poeta Trágico”, é só um veículo para tratar da condição humana, tema que interessa muito mais ao perspicaz escritor. Da mesma forma, a paixão em nossas vidas tem um propósito maior que justifica todo o sofrimento: abrir nossos olhos espirituais para o mistério do mundo.
“O sol é uma grande Paixão, que vai acabar, ainda que dure muitos milênios, porque tudo o que queima, apaga.”
(Carlos Heitor Cony, 72 anos, jornalista e escritor)
“O Nélson Rodrigues dizia que o amor que acaba não é amor, eu digo que paixão é o contrário, a paixão que não acaba não é paixão. O amor, por ser um sentimento mais controlável, mais equilibrado, tende a ser permanente, mas, se acabar, então é porque não foi amor, talvez tenha sido paixão, talvez tenha sido um equívoco, enfim, existem várias possibilidades. Não sendo uma coisa pode ser mil.
Mas a paixão é o seguinte, se não acaba não foi paixão, por esse motivo, a reincidência. A gente conhece um monte de pessoas apaixonadas que sofrem, ameaçam arrebentar os pulsos, ameaçam isso, aquilo, e no entanto, passa algum tempo, elas voltam a se apaixonar. Esse é o diferencial entre a paixão e o amor.
A paixão pode ter uma vida longa, de anos, dependendo do que você alimenta, é como uma chama, se você risca um fósforo, o que é que dura um fósforo aceso? Muitas vezes nem chega a queimar todo o palito, fica só na cabecinha onde está o fósforo mesmo. Se você tiver um cuidadozinho, você ainda consegue prolongar aquela chama que vai para o palito, e assim dura um tempinho além, mas é um palito fininho, pequenininho, chega uma hora em que você tem de jogar fora porque não tem mais palito.
Então, dentro de um fósforo, existem duas dimensões da chama. Agora, com essa chama você pode pegar e botar fogo no mundo e aí essa chama demora muito tempo queimando. O sol até hoje está queimando, o sol é uma grande paixão, de milênios e milênios, nós vamos morrer, o sol vai continuar queimando. Tudo que queima, um dia vai acabar, tranqüilamente vai acabar. O sol é uma paixão violenta, é um ser, é um deus, uma coisa qualquer que queima, queima, queima, e vive da própria queimação, o dia em que deixar de queimar morre. A vida dele é se deixar queimar.
Então você veja que, quando a gente diz assim, a paixão é uma chama, a gente tem a impressão de que seja uma coisa breve, sim, pode ser brevíssima, pode ser até apenas um simples clarão, aquele fósforo que você acende e apaga num instante, para acender um cigarro, uma boca de fogão, e pode também demorar muito, como o sol.
Paixão não é uma coisa boa nem ruim, é uma fatalidade, eu não vou dizer, por exemplo, que se o sol tivesse consciência, ele diria que queimar é bom, mas é o destino dele.
Eu não vou dizer que a gente vá de boa vontade encontrar a paixão, eu não sei, eu acho que é o contrário, eu acho que a paixão é que vem nos encontrar, à revelia. De repente você se descobre apaixonado, de repente você se descobre ardendo, você não é consultado.
Amar é diferente, você até pode eventualmente amar forçado por circunstâncias, por exemplo, amar porque convive com aquelas pessoas, partilha raízes familiares. Você ama assim os pais, os parentes, os filhos. O amor entre homem e mulher é um pouco escolhido, um pouco buscado, a paixão, não. Você pode amar a vida inteira e nunca se apaixonar.
A paixão é forte demais e quando acaba, acaba de vez. O sol, quando acabar de queimar, vai se tornar o cadáver de uma estrela, rolando no céu, e nós todos, que vivemos em função dele e somos frutos dessa paixão, também estaremos mergulhados num planeta frio, desértico, será o nada, a morte.
O amor nasce de uma necessidade que toda pessoa tem de gostar e ser gostada, tornar-se especial, destacar-se na paisagem. O amor é uma cumplicidade entre dois seres, contra o mundo, que é muito hostil, você precisa de um companheiro, companheira, para te ajudar a enfrentar.
O amor é uma manifestação indispensável numa vida normal, equilibrada. Evidentemente que ninguém parte para esse sentimento com o pressuposto de sofrer, cortar os pulsos, mas pensa numa retribuição, em ser correspondido. O amor é isso.
A paixão, não. A paixão irrompe como um câncer, explode e tem um curso descontrolado, por isso acaba. Você não pode dizer “eu quero me apaixonar”. A paixão surge contra a sua vontade, você luta contra ela, mas é inútil. Ela acaba, claro, através de um trauma muito grande.
Assim como são enigmáticos os momentos em que a Paixão começa, talvez ainda mais enigmáticos sejam os momentos em que ela acaba.
É a morte no sentido metafórico. Você pode amar uma pessoa, deixar de amar e voltar a amá-la no futuro, mas paixão é uma vez só. É um fósforo, que não dá para acender duas vezes.
O homem é uma casa habitada por um poeta trágico, poeta não no sentido de fazer poesia, mas poeta no sentido original da palavra, uma manifestação espiritual. É um ser que sofre e goza, sabe distinguir entre o bem e o mal, entre o belo e o feio. A poesia pode ser cômica, quando acaba bem, e trágica, quando acaba mal. Essa é a diferença entre tragédia e comédia.
Comédia pode ser uma história triste, mas tem de acabar bem, por isso a sofrida trajetória de Dante tem o nome de “A Divina Comédia”, porque o personagem acaba no céu. Então, eu digo que o poeta que habita o homem é trágico porque ele acaba mal, acaba na decadência.
O homem parte do maravilhoso, da plenitude no útero, para acabar na destruição completa. No Édipo rei, de Shakespeare, a última fala dele, já cego, depois de ter matado o pai e transado com a mãe é: “Nenhum homem pode se considerar feliz antes do fim.” Ou seja, você só pode avaliar se foi feliz depois do fim, e o nosso fim é a destruição, porque o homem também é uma paixão, mesmo os imortais.
Quando o sol se tornar um cadáver gelado sem rumo no universo, quem é que vai ouvir Mozart? Quem é que vai ler Fernando Pessoa? Tudo terá acabado. A paixão é assim, vai embora e não deixa rastro.
Eu leio muito Dante, desde adolescente, ele termina a Divina Comédia dizendo mais ou menos isso, que o amor é que move o sol e as outras estrelas. A entidade “Deus” seria o amor, que nunca morre. O amor move a vida e o mundo. Ele tem gradações, a paixão é única. Todo o lugar comum sobre o amor vale, e ele é tão necessário quanto o ar que se respira.
A paixão não é necessária, mas é ela que dá condições a uma pessoa de conhecer, penetrar no mistério da vida. É uma experiência avassaladora, uma condenação.
Tudo tem um preço, nada na Vida é grátis. Vale a pena pagar o preço da Paixão?
Vale sim. O poeta britânico Erza Pound, eu costumo citar muito isso, dizia que a obra de arte é muito chata, uma coisa imensa, da qual você aproveita pouco. Você atravessa um livro de poemas com várias páginas para encontrar alguns versos brilhantes. Por causa deles é que a leitura vale a pena, eles representam o que Pound chamou de “punti luminosi”, os pontos luminosos.
Toda obra artística seja ópera, poema, e até o soneto, tão curto, tem seus pontos luminosos, trechos inesquecíveis.
Esses pontos luminosos existem também na vida. Quando você olha a sua vida, para trás, percebe que houve dias e dias, horas e horas perdidas, esquecidas. O que você chama de sua vida, na verdade, é um acúmulo, uma sucessão de pontos luminosos, nem sempre bons, há alguns muito ruins, que fizeram você sofrer, ter vergonha de si mesmo, fizeram você chorar, mas esses pontos é que constituem a sua biografia.
Você seria incapaz de contar a sua vida minuto a minuto, dia após dia. Quer um exemplo? Pegue uma foto de viagem sua, antiga, olhe para ela e tente reconstituir o dia em que a tirou, o que tomou no café‚ da manhã, que horas acordou, o que fez até dormir. A não ser que tenha sido um dia excepcional, você não vai se lembrar.
Se você tiver de escrever hoje a sua biografia só vai fazer referência aos pontos luminosos, o resto são ângulos mortos, que não interessam, você não decantou, não metabolizou. O resto não é você.
A Paixão é o grande ponto luminoso da Vida, não é uma referência, é a maior.
Eu não sei se sou um homem de paixões, talvez eu seja anormal nesse sentido, porque eu acho que nunca amei na minha vida, eu só me apaixonei, e isso tem me dado muito problema. Eu de certa forma invejo amigos meus que têm condições de manter relacionamentos duradouros, tranqüilos, os meus relacionamento nunca foram tranqüilos, são tempestuosos, até mesmo agressivos. Eu não consigo me relacionar com uma pessoa que venha a gostar de mim de uma maneira padrão. As pessoas terminam gostando de mim de um jeito diferente, e terminam, muitas vezes, me sufocando.
Eu não conheço o Amor, já a Paixão…
Eu estou no meu sexto casamento, que já dura 20 anos, mas é um caso de arremate, a saideira. Eu nunca fiz uma mulher feliz e nenhuma mulher me fez feliz. Mas tive momentos tão bons, que por serem tão bons tiveram de acabar. Porque eram momentos ditados pela paixão, que acabaram trazendo problemas. Nunca uma mulher se aproximou ou se apaixonou por mim pelo que eu sou, mas por conta do personagem que eu criei para ela. Eu contei para cada uma de minhas mulheres a história do mundo, como o Augusto fez com a Mona, os dois são personagens da “Casa do Poeta Trágico” e, nesse ponto, o livro é metafórico.
No final de três dos meus seis casamentos, eu tive de buscar minha mulher em clínicas psiquiátricas, uma porque cortou os pulsos, outra… Mas não foi por minha causa, não foi porque me amassem, mas porque exasperadamente queriam uma coisa que eu não podia dar, e que nunca havia dado, mas que elas julgavam eu seria capaz de dar, essa coisa de acreditar no tempo, é complicado….
Eu desperto paixões, talvez, porque eu tenha essa mania de contar a história do mundo. Outro dia uma amiga minha, e eu digo amiga porque realmente não existe nada entre nós, ela é 40 anos mais nova, é muito bonita, foi manequim, viajou muito, pois ela anda me telefonando e eu não retorno suas ligações. Estou fugindo dela pelo seguinte, porque na última vez em que nos vimos, ela me disse “eu estou ficando muito dependente de você.” Aí eu pensei “eu já vi esse filme, eu não quero isso”.
Não é que agora eu esteja fugindo de paixões, eu sempre fugi, mas paixão não se escolhe viver. Mesmo nesse caso, se tiver de ser paixão, acontece. Quando ela me diz uma coisa daquelas, eu penso em fugir, mas ao mesmo tempo fica aquele diabinho na minha cabeça dizendo “‚ mais uma, mais uma”. Aí entra a minha cabeça e diz “não, você tem 40 anos a mais, rapaz, peraí. Quando ela nasceu você já era um homem de 40 anos, ela tem admiradores, se afasta”. Mas eu fico remoendo: “ela falou que está dependente de mim e o que ela quis dizer com isso?”
Aí, de repente, eu atendo outro telefonema dela e ela conta que viu um filme e que no filme ficou dialogando mentalmente comigo, e que queria que lhe explicasse uma coisa. Eu desligo e, de noite, na cama, eu fico pensando “ai, meu Deus, por que não? O que é que me custa fazer mais uma besteira?” Eu acredito que dessa vez meu juízo vai funcionar, e não é nem o juízo, mas é um caso de polícia, são 40 anos de diferença, se ainda fosse menos, talvez eu não fugisse tanto.
A paixão é cheia de “nãos”, e isso valoriza muito os “sins”. Eu vivo em estado de paixão, e gosto, nem sei se gosto, é inevitável. A paixão é uma lagosta irresistível que entra pela sua boca. Vai colocar para fora como?”
Por certo que Swann não tinha consciência direta da extensão daquele amor. Quando procurava medi-lo, acontecia-lhe às vezes que parecia diminuído, quase reduzido a nada; por exemplo, o pouco de gosto, quase o desgosto que lhe haviam inspirado, antes de amar Odette, os seus traços acentuados, a sua pele sem frescura, e que tornava a sentir alguns dias. (…) é curioso como até a achava feia, mas seu amor estendia-se muito além das regiões do desejo físico. (…)
E aquela doença que era o amor de Swann de tal modo se multiplicara, estava tão estreitamente ligada a todos os hábitos de Swann, a todos os seus atos, a seu pensamento, a sua saúde, a seu sono, a sua vida, até ao que ele desejava após a morte, era de tal sorte uma só com ele, que não lha poderiam arrancar sem o destruir quase por completo: como se diz em cirurgia, o seu amor não era mais operável.”
(Trecho extraído de “No Caminho de Swann”, primeiro volume da obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, p.298, Editora Globo)
“Há uma cena, na obra “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, que me impressionou muito. Swann, que é o personagem principal, se apaixona pela Odette, e Swann é um sujeito bem nascido, criado em ambiente muito bom, enquanto a Odette é uma burguesa, até suspeita de ser meio leviana, não exatamente prostituta, mas aquela mulher fácil, que já teve vários protetores.
E ele tem paixão por ela. Swann, um homem finíssimo, admirado por toda Paris, cortejadíssimo pelas mulheres, se apaixona por essa Odette, e ela nem merecia o tanto que ele fazia por ela. E então Swann começa a persegui-la pela cidade. Toda noite — não lembro se é bem isso, já li a obra várias vezes, mas faz tempo — enfim, toda noite, ele se postava em frente à casa dela para ver sua janela, descobrir se ela dormia ou se estava com outros homens, e punha-se a imaginar que camisola estaria usando, que perfume…essas coisas.
Um dia, a luz apaga mais cedo, e ele supõe que ela tenha ido dormir, mesmo assim estranha, fica desconfiado, e se põe a andar como um zumbi pelo bulevar. Aquela gente toda indo e vindo, esbarrando uns nos outros, e de repente passa uma mulher, ele a olha de relance e segue. Pouco depois se dá conta: “mas é ela”, diz para si mesmo. Terrível, não é? Porque a paixão não tem a ver com a pessoa, mas com a imaginação. Ele estava numa abstração que não tinha nada a ver com aquela pessoa que justamente a causou. Isso é paixão.
O amor está muito ligado à performance sexual; a paixão, não, está além do sexo. A paixão não é necessariamente carnal, o amor é. Claro que pode existir sexo, mas como decorrência, não é o principal.”
*Inédito do livro “Para esquecer um grande amor”, de Christiane Brito
Nota: A autora escreve em português do Brasil
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