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João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

Meu caro Francisco Assis…

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

 Francisco Assis

Parece que afirmaste numa entrevista à Rádio Renascença que “tenho fortes dúvidas e, sobretudo, que seja desejável que o Governo chegue ao fim da legislatura”. Também se sabe que, desde o início, não concordas com a actual convergência política do Bloco de Esquerda e do PCP com o PS (que me perdoem os Verdes, se, por motivos óbvios, os incluo no PCP) no apoio a um governo da responsabilidade deste último partido.  És militante do PS e Eurodeputado nas listas, claro, do PS. Já foste um brilhante líder do Grupo Parlamentar do PS. E a divergência, até pelas responsabilidades políticas que continuas a ter, é um teu legítimo direito. Diria mesmo: um dever. O PS é um partido livre e não concordo com aqueles que te estão a atacar com uma linguagem básica que é pouco própria de democratas. Mas, sou franco, também eu não concordo com as posições que vens defendendo. E direi aqui porquê. 

Convergência na ideia de esquerda

  1. Não concordas, desde o início, com esta solução política, apesar de também (suponho) não teres concordado com a governação do PaF. Mesmo assim, não tendo o PS obtido uma maioria que lhe permitisse governar sozinho, entendeste que se deveria dar essa oportunidade à coligação que obteve mais votos nas eleições, independentemente de haver uma manifesta maioria de esquerda no Parlamento disposta a viabilizar um governo que praticasse políticas diferentes (à esquerda) das anteriores. Partias, assim, do princípio de que, independentemente da formação de maiorias no Parlamento, a legitimidade para governar caberia a quem tivesse obtido mais votos nas eleições. E terias razão se esse resultado terminasse, depois, em aprovação do programa de governo no Parlamento. O que não viria a acontecer, tendo-se formado, pelo contrário, nesse mesmo Parlamento, uma maioria política disposta a apoiar uma alternativa de governo. Mas admites, creio, que a solução parlamentar encontrada é constitucional e que, na verdade, os governos saem das maiorias que se formam no Parlamento. De resto, como sabes, o sistema representativo é assim que funciona.
  2. Mas não concordaste com esta solução porque, dizes, as mundividências e os programas políticos do PS e dos dois outros seus parceiros são divergentes em pontos essenciais (não ouso dizer inconciliáveis porque isso seria reconhecer que a palavra comum “esquerda” não se lhes aplica, sendo, pois, politicamente inútil como traço-de-união). O que é verdade. Mas é natural que assim seja, sendo até desejável porque a representação à esquerda se torna mais ampla e inclusiva, reforçando a densidade política do próprio Parlamento. Mas, se vejo bem, este discurso ainda se situa na esfera identitária e na da “ética da convicção”. Identidades e convicções diferentes, não há dúvida. E, na verdade, nenhuma destas forças políticas deixou sequer de afirmar, para dentro e para fora, a sua verdadeira identidade, escondendo as diferenças. Bem pelo contrário, as diferenças têm sido claramente exibidas, sem traumas nem duplos sentidos.
  3. Assim sendo, a convergência no apoio a esta solução governativa dá-se, pois, não na esfera identitária ou da “ética da convicção”, mas na esfera da “ética da responsabilidade”, ou seja, na esfera do compromisso e no quadro de, pelo menos, uma ideia minimalista de esquerda que possa funcionar realmente como traço-de-união entre as três forças políticas (e não só para rejeitar, mas também para construir). E creio que até agora ninguém poderá dizer que não é esta a ideia inspiradora da sua acção política, nem que seja por oposição à política que estava a ser seguida. Portanto, “ética da responsabilidade”, sim, mas num quadro de referência que tem a ideia de esquerda como colante. E nem sequer é difícil defini-la, esta ideia, como sabes. Basta ler o livrinho do mestre Bobbio.
  4. O conceito de “coligação” (ou, neste caso, acordo), de resto, inclui esta dupla assunção (“ética da convicção” e “ética da responsabilidade”), convergindo para uma ética pública, a única que pode permitir que forças diferentes apoiem uma mesma solução governativa. O que, depois, pode acontecer é que as forças que integram este bloco convergente exibam ou silenciem, com maior ou menor evidência, as suas próprias posições de princípio sobre as políticas executadas (ou não). Neste caso, elas têm vindo a ser assumidas frontalmente, o que, no meu modesto entendimento, é não só um valor em si próprio como também se revelou estratégia inteligente que, de resto, evidencia um escrupuloso respeito pelo voto dos próprios eleitores. Além disso, permite evitar a já tão cansativa “coscuvilhice” dos media à procura de divergências estratégicas, já que toda a gente as conhece.

A superação da “conventio ad excludendum”

Acordos entre partidos muito diferentes, as famosas “grandes coligações”, têm-se vindo a verificar, desde 1966, na Alemanha entre o SPD (partido irmão do PS) e a CDU, partidos claramente alternativos para soluções de governo. E, em 1981, se não erro, o próprio Mitterrand incluiu no seu governo quatro ministros comunistas. Acresce que hoje já nem sequer vivemos em regime de bipolarismo estratégico-militar que ponha com a mesma acuidade a questão do acesso aos segredos militares. E também é verdade que a tendência crescente, que se tem vindo a verificar, para a fragmentação do quadro partidário, rompendo com a lógica do bipartidarismo em alternância, nem sequer aconselha pragmaticamente excessiva rigidez programática e ideológica (de todas as partes).

Diferenças e divergências? É claro que existem. Mas estes dois partidos nem sequer fazem parte do governo, estando, de resto, a revelar-se exemplarmente leais ao compromisso assumido, defendendo com coerência as políticas adoptadas. Ou seja, no meu entendimento, este compromisso, mais do que assumido em nome da “ética da convicção” (embora tenha sido em nome dela que a abertura se fez), é assumido em nome da ética pública, um terreno para onde converge realmente o interesse geral e onde se sentem confortáveis as forças que integram esta solução. Ou seja, tudo isto tem um sentido e é perfeitamente enquadrável dentro das categorias clássicas da política. Com a vantagem de ter promovido uma lógica de inclusão política num ambiente que, pelo contrário, vivia em permanente lógica de exclusão. Que se estava a tornar tão matricial que Passos Coelho e o sagaz Paulo Portas nem sequer a integraram como variável na sua estratégia pós-eleitoral. A estupefacção de Passos Coelho (de Portas e até mesmo de Cavaco) é a isto que, no essencial, se deve.

  1. Esta convergência, perfeitamente admissível e até desejável, provocou, em Portugal, finalmente, a queda do nosso “Muro de Berlim”: todas as forças com representação parlamentar poderem efectivamente vir a fazer parte de soluções governativas. E isto é um valor em si enorme, independentemente dos conteúdos programáticos (as “policies”) que venham a estar em causa. E, sobretudo, se isso for feito assumindo cada força política a sua própria matriz e distinguindo claramente, na sua acção e no seu discurso, responsabilidade e convicção, no quadro de uma efectiva e assumida ética pública. Que o Muro tenha sido derrubado pelo PS deve, no meu modesto entendimento, ser motivo de orgulho e não de vergonha. Vergonha, sim, seria continuar a alimentá-lo!
  2. Outra coisa são os resultados. Mas esses ver-se-ão no fim do mandato, no fim de um concreto exercício politico, superada que ficou essa “convention ad excludendum” que marginalizaria, por puro preconceito politico, da solução governativa um milhão de eleitores e uma consistente representação parlamentar.
  3. Por outro lado, desejar que esta solução não chegue ao fim do mandato parece-me inaceitável num quadro em que existe uma maioria parlamentar que resultou de um sistema eleitoral proporcional, como o nosso. Com que argumentos, sendo este um governo do PS, tendo um Primeiro Ministro excelente (como parece defenderes, na recente entrevista à RR e no artigo do “Público”, de 29.12.16) e estando o governo em funções somente há cerca de um ano? Afinal, trata-se de um governo do teu partido, de um PM que elogias e de políticas que, até na tua óptica, se têm mantido no quadro de referência do PS, resistindo também com dignidade e eficácia aos embates com a Comissão Europeia!

Uma pergunta incómoda e uma sugestão 

  1. A pergunta de um milhão de euros é, então, a seguinte: porque é que continuas tão disruptivo? Sou directo e objectivo: para te manteres no topo da agenda pública e te capitalizares politicamente. Mas, meu Caro Francisco Assis, se assim for, e ainda que legítimo, o teu discurso tem um fraco valor político, mas também hermenêutico!
  2. Porque tenho consideração por ti, pela tua inteligência e preparação intelectual – tendo até já publicado, juntos, e com outros amigos, um livro sobre a “Terceira Via” – , e porque sei que a hermenêutica te interessa, vindo, como vens, da filosofia, aqui te deixo o repto (um pouco interesseiro, confesso) para, em vez de perderes tempo com intervenções disruptivas e até um pouco tablóides (embora num tabloidismo político tão sofisticado que até convoca para a discussão a poesia), vir discutir um meu documento, “Um novo paradigma para o socialismo”, que circula no espaço público (designadamente, neste Jornal). É disso que mais precisamos, com esta onda de populismo a bater insistente e rumorosamente à nossa porta. Só com um esforço de clarificação da identidade do socialismo democrático nos tempos de mudança que correm poderemos ajudar a esquerda a tornar-se realmente hegemónica no nosso país, nem que para isso seja necessário, convocar, não o marxismo-leninismo, mas esse brilhante marxista italiano chamado António Gramsci. Prometo que ajudarei na tarefa.

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores.

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