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Sexta-feira, Dezembro 20, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XI. As memórias e o desejo das memórias.

Minha memória,

Gostava de me lembrar. Gostava tanto de me lembrar… Os sons e os cheiros desse Natal não me chegam mais. Não sei para onde foram o som das pinhas a crepitar na lareira, o rosto dos meus filhos crianças, a mão da minha mãe estendida por sobre a mesa…

Sabes, já não recordo a cor da toalha da mesa, a cor do serviço de porcelana, o cheiro do peru acabado de sair do forno. Nem sei sequer se chovia…

Foi há um tempo indefinido que também não recordo. Um Natal igual a tantos outros que me vais enviando de quando em vez… Mas era este, sabes Eu queria este preciso Natal para poder fechar os olhos e saborear de cor as azevias da tia Teresa, mergulhar os dedos na calda de açúcar transparente, cheirar o perfume do azevinho que imagino, estaria algures numa jarra.

Não me lembro agora de nenhuma jarra nesse Natal…

As jarras dos natais que me envias, repletas de flores e azevinho não são as desse Natal, são de outros natais. Eu sei que são de outros natais. Desse, não me lembro de nada. Sei que existiu, que estive lá, que a mão da minha mãe voava eficiente a passar-me o pão por cima da mesa. Todos os anos, até uma determinada altura da minha vida, a mão da minha mãe voava sobre a mesa acautelar tudo, a passar tudo, a certificar-se que todos estavam já servidos.

Não me lembro agora da mão da minha mãe, do rosto da minha mãe, do rosto dos meus filhos crianças ainda, nesse Natal.

Os episódios de Natal que me envias pertencem seguramente a outras datas, a outras mesas, a um outro tempo… E eu gostava tanto que me enviasses as memórias assim, respectivamente deste ou daquele acontecimento e não neste aglomerado de histórias que me trazem factos ou parcelas de factos e nenhum deles corresponde a este meu Natal.

Não sabemos porque é que o tempo se mistura assim nas recordações.

Os olhos que me olham agora, do outro lado de uma mesa de festa do meu passado, podem ter sido em alguma altura da minha vida mas, na maioria das vezes, não estão devidamente datados e devidamente detalhados. São olhos apenas. E, de quem são esses olhos, afinal?

Às vezes, sabes minha memória, assusta pensar que nunca mais me irei recordar desse momento. Que tu, minha memória, nunca mais me irás recordar desse momento. Talvez, porque no essencial, foi para ti um momento mais sem nada que o fizesse especial. Porém, eu sei que havia a mão da minha mãe por sobre a mesa… E era lá que estava a mão da minha mãe por sobre a mesa, nesse preciso momento desse inconfundível e único Natal.


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