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Sábado, Novembro 2, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XII. De tudo o que eu já desconheço.

Minha memória,

Num recanto de ti, está afinal tudo o que hoje, aparentemente, eu já desconheço.

Passou-se um quarto ou dois de vida numa dança frenética de mudanças, de lembranças, de conhecimento e de acontecimentos. Coisas que se somaram em horas e horas e, aconteceram, por vezes, em pequenos lapsos de segundo que se eclipsavam mal surgiram … O tempo, afinal, de quase toda uma vida, a minha própria vida.

Não me lembro porque não me recordas minha memória do tanto que fiz, do muito que aprendi, de outro tanto que presenciei. As coisas passaram-se e tu, de todas elas, trazes-me apenas uma vaga ideia…

A tabuada já não a sei toda de cor. O riso do meu irmão há muito que partiu. Da janela do meu quarto de outrora, lembro apenas parte da paisagem anoitecida pelo tempo e também, por ti. Trazes-me as recordações envoltas numa névoa que me embrulha a alma e a torce a faz compacta nessa espécie de aglomerado.

Sabes, foram muitas horas a estudar, a compreender as nuances da ciência, as tonalidades da razão. E, de tudo isto, fazes-me chegar um lugar que eu hoje quase desconheço. São frases com pouco nexo, formulas embotadas, lembranças entrecortadas e, tantas vezes quase incompreensíveis.

Não sei onde guardas tu o meu passado minha memória ou sequer, se as chaves de que dispões te permitem abrir todos os compartimentos que guardam a minha história.

Há seguramente, nesse teu lugar, muitas gavetas enferrujadas, muitas dobradiças que entretanto cederam, muitas portas empenadas. Do meu passado, fazes-me chegar apenas um pouco do que eu fui. Apenas um pouco do que eu sonhei, e um outro tanto do tanto que eu aprendi, uma pitada, apenas isso, de tudo o que imaginei…

Consigo perceber alguma coisa e adivinhar que muito do que se passou não me consegues tu trazer. Serão também as tuas inépcias, os teus medos, as tuas inseguranças… Afinal o passado tem peso, tem sombras tem uma mágoa indefinida das coisas todas que não voltam mais.

É seguramente muito mais fácil lidar com a surpresa do futuro mas tu, minha memória, não sabes sequer o que é o futuro a não ser quando eu te surpreendo com a continuação de uma lembrança…

Ontem os patins que me trouxeste, sem cor definida nem pouso certo transformaram-se nos pés da minha neta em estrelas voadoras.

Foi no parque, ao início da tarde, tinha passado a manhã às voltas na arrecadação com caixas que me diziam tanto de mim e encontrei-os. Tratei de os limpar e de os colocar nos pés da minha neta e foi assim que se transformaram em estrelas voadoras.

Nunca me tinhas lembrado dos meus patins de crianças nestes termos. As imagens que me trazias eram sempre difusas e, os pequenos pés da minha neta conseguiram transformá-las.

É por isso que não me arrependo de nada. Nem sequer daquilo que já não me recordas, nem sequer dos espaços em branco que me fazes chegar e que sei que um dia foram tão plenos, tão cheios, tão vivos. Não me arrependo porque descobri que a partir de hoje eu posso completar sem medo esse teu puzzle antigo e, que o jogo do resto da minha da vida é exactamente esse.

Lembra-me como tu quiseres. Lembra-me como tu puderes.

 


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