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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XIV. O último dia.

Minha memória,

E o último dia e o último olhar, a quem o recordarás?

A deslizar devagarinho pelas bermas da vida à procura da minha possível eternidade, tenho que te perguntar:

– A quem o recordarás?

Quem parte, parte sem memória. Ou será que me acompanhas tu, nessa passagem?

A Vida a fugir-me depressa das veias, os espaços a diminuírem, a incerteza de me lembrar de alguém ou de alguma coisa. E o instante, enorme e absoluto da minha quase já morte que me agarrará pela cintura e me fará deslizar, ou correr por aí, ou cavalgar num embaciamento do fundo dos olhos a desmentir quase tudo… Quase tudo o que acreditamos que se vai passar e afinal nunca irá acontecer.

Será que é isso? Ou surgirá um funil de luz misturado com o mar azul dos meus 15 anos, com os olhos azuis do amor maior no mar azul dos meus quinze anos e, a transparência da água a envolver quase todos os sonhos.

Há um instante preciso de inconsciência? Talvez imediatamente antes seja o vazio, ou uma amalgama de acontecimentos, de vida que se sorveu depressa demais… Ou talvez seja música e luar, ou talvez sejas tu, apenas, minha querida memória a correr a passar-me um filme mudo e a preto e branco que trazes de dentro de um baú de alma.

Há baús de alma que se abrem para a passagem? Baús repletos. Com tudo o que de importante se viveu e tudo o que de importante se imaginou. Baús repletos até acima de tempos, de acontecimentos, de histórias.

E a luz que envolve tudo, até o espaço diminuirá, até o tempo desaparecerá, até o medo que se instalará no fundo da cama a rir, a rir… haverá mesmo essa luz? Uma luz mais ou menos pálida a criar sombras nas paredes, se for de noite. E vai ser de noite. Será certamente de noite.

É de noite que se morre. Uma noite amena e cálida ou um breu de tempestade que avassala tudo. Sopro irreconhecível no fundo do peito que envolve as mãos, arrefece os pés, desnorteia os movimentos.

É de noite que a morte vem e se por acaso for de dia, o dia ensombrece-se num instante e torna-se breu. Um breu que não me deixará nenhuma história.

Não irei recordar a partida nem o tempo que a precedeu nem o lugar que a acompanhou. Não irei recordar os últimos lamentos ou recados de quem fica. Nem sequer os rostos aflitos, as mãos entrelaçadas, os aconchegos e os carinhos, as preces.

-Dá-me a tua mão minha memória.

Nesse instante absoluto dá-me só a tua mão. Não me recordes de nada, não me lembres de ninguém. Nem sequer aquilo que fui ou daquilo que jamais serei.

As minhas histórias resguarda-las todas a partir daí. Como se nada se tivesse passado, como se nada tivesse acontecido. Minha memória, como se eu não tivesse sequer, existido.

A tua mão, apenas.

 


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