XVI. Os sons da minha memória.
Minha memória,
Os sons da minhas memórias chegam-me agrestes. Por vezes, como se o passado irrompesse ventoso e sonoro pela janela da cozinha a dizer-me:
– sopro, sopro agora com toda a força! E grito. De tudo o que se passou na tua vida não restará senão este meu sopro e este meu grito. Posso torna-lo por escassos instantes apenas uma brisa e um sussurro a acompanhar uma ou outra passagem doce da tua vida ou, posso soprar com toda a força, e trazer-te tudo num enorme berro e, varrer tudo e tornar com este vento e este grito a tua vida num redemoinho. Escolho quase sempre o grito. Um grito imenso, para que recordes…
O passado irrompe assim pela janela da cozinha e as memórias são quase sempre acompanhadas por este som agreste que se se faz presente e, se desloca bamboleante pelas minhas costas abaixo, num frio, num frio.
Gostava de me lembrar permanentemente em sussurros e caricias em forma de brisa. Deve ter havido dias assim… Mas não me chegam. Quase nunca me chegam.
Recosto a cabeça no cadeirão e o medo apodera-se logo do passado. O medo dessa aflição de ventania, de gritaria que acompanha quase todas as minhas memórias.
Hoje, por estar azul e ameno lá fora pensei que por um momento me fizesses chegar, minha memória, alguma coisa sem alvoroço…
Não sei onde passei o tempo brando, onde deixei as meias palavras ditas ao ouvido, onde me aconteceu voar devagarinho de felicidade. Para mim, a vida passou-se num imenso rodopio pois é assim que a reconheço em quase todas minhas lembranças. E a vida, não é senão aquilo que reconhecemos nas nossas lembranças. Ou então, viver seria apenas o instante sem nenhuma perspectiva, por isso mesmo, de felicidade.
A felicidade, efectivamente, constrói-se muito através da antecipação de si mesma. O gozo é enorme por sabermos que amanhã será um dia bom. Talvez muito superior à soma de todos os instantes bons que compõem esse dia bom. Por isso mesmo, por serem apenas instantes, apenas sofríveis e passageiros instantes.
Depois, somos outra e outra vez felizes através da lembrança. Menos eu que me assusto a pensar nos gritos, no vento, no descompasso permanente dos teus passos, minha memória.
Sentar-me no cadeirão e recostar a cabeça não basta para me reviver feliz. É preciso que me ajudes tu minha memória a reviver-me feliz. E o som e o sopro manso que não chegam…
Não sei efectivamente porque é que o som de uma flauta de bambu que me acompanhou parte da infância nunca se faz agora, presente. Nem o do pião a rodar célere na palma da minha mão.
Não me lembro de nenhum destes sons.
O mar que me rodeou outrora é agora sempre agreste. As vozes das pessoas que me falaram são sempre roucas, graves e altas. E, eu sei que havia o olhar doce da minha mãe e o meu primeiro amor…
Como se as minhas recordações estivessem encerradas num disco errado de rotações aceleradas, o que me faz nunca querer lembrar-me de mais nada.
Levanto-me do cadeirão, abro a janela e deixo entrar por um momento o som absurdo da escuridão. A rua penetra-me então por inteiro e, muito devagar, encosto a cabeça no umbral largo da janela. Sem sequer se ouvir, assobio.
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