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Sábado, Novembro 2, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XVII. A partilha.

Minha memória,

Hoje percebi que de ti, tenho afinal tão pouco que me seja único. Que me seja absoluto, próprio e de mais ninguém.

O que pensava pertencer-me por inteiro, em cada uma das minhas lembranças, não são senão recordações partilhadas. Por uma geração inteira quando se trata de recordar velhinhos carrinhos de rolamentos que fazíamos deslizar céleres pelas ruas. Ou, por todos os amigos, que equilibravam arquinhos comprados na feira, a galgarem pelo empedrado largo da aldeia.

Se pensarmos nas memórias do empedrado largo da aldeia, de como nos magoavam os joelhos demasiado irrequietos, elas são partilhadas por todos os que ali viveram, ali sonharam, ali simplesmente passaram muito antes e muito depois de mim.

Recordações partilhadas também as da juventude, por uma praia inteira quando era o mar azul que nos desafiava o olhar. Por uma cidade inteira quando o sol em cadência crescente nos amornava os sorrisos e acompanhava os nossos passos sempre tão apressados. Por uma escola inteira, a correr ao toque da sineta esbaforida depois do intervalo, esgotado demasiado depressa. Sempre demasiado depressa.

Recordações partilhadas que quando mais velhos, assumimos em cada fotografia que revisitamos juntos, em cada olhar que recordamos juntos. Encontramo-nos para nos revisitarmos. E, contamos vezes sem conta os mesmos episódios uns aos outros, recordando rostos e revivendo afectos.

Somos por isso, cada um de nós uma lembrança que é nossa e de tantos. E, é desse todo revisitado vezes sem conta, por tantos, que conseguimos enquanto sociedade alinhavar os passos que agora nos acompanham. Os passos que nos servirão também de alma e de lugar para aquilo que construiremos como o nosso futuro.

A solidão, não é senão aparente no que diz respeito às memórias. Por vezes, não percebemos logo o outro, ele pode estar diluído no fundo da fotografia ou ainda nem sequer ter acabado de passar por lá. No segundo a seguir, já lá estaria certamente. E, são as mesmas cores, os mesmos espaços, os mesmos dias que passamos. Os mesmos cenários, os mesmos acontecimentos. O mesmo amor de pais, de filhos, de amantes, o mesmo afecto, o mesmo desafecto, as mesmas lágrimas a mesma água, o mesmo ar translúcido que nos envolve a todos.

Minha memória, que és afinal de tantos e te reinvento e te redescubro por isso mesmo.

Ontem, como hoje, iremos certamente recordar. Mesmo sem querer…o sol de Inverno vai-nos lembrar outros invernos. O sorriso de uma criança, trará à lembrança o de outras tantas.

Somos nós ali, no fundo da fotografia ou serão outros? Não é importante, a humanidade reconhece-se toda afinal, em ti minha memória.

Partilhar memórias é revisitar-nos pelos olhos de outrem. Porque o mundo que conhecemos é apenas um – este mesmo lugar.

 


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