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Terça-feira, Julho 16, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XIX. Mudei de lugar.

Minha memória,

Mudei de lugar minha memória. Demorei os olhos em cada recanto, em cada acontecimento, na curva coçada do braço do sofá.

Da janela, retive tudo o que se passava no exterior e também o vento, a cor do luar, os garotos que passaram a correr… Era ontem, era dantes e era hoje. Os mesmos garotos regressam agora a casa depois de um dia de trabalho. Trazem as compras, os filhos, os anseios, tudo dependurado nos braços.

Dentro destas paredes passou-se o meu mundo inteiro e uma parte significativa da minha vida. Demoro os olhos e retenho as cores pálidas dos azulejos da cozinha. Uma gota de água escorrega devagar da torneira do lava-louças. É só uma gota de água mas quero que faça parte da minha memória como se fosse um rio inteiro numa cavalgada aflita ao encontro do mar.

Amanhã, eu não estarei mais aqui. Se não me guardas cada acontecimentos, cada vivência, o desenho simétrico do papel de parede amarelecido do meu quarto, minha memória, nada me poderá valer. Perderei parte da minha história. Toda a minha história que se passou aqui, neste lugar.

Ir embora significa para quase toda a gente deixar uma parte substancial de si. Daquilo que se viveu e não se recordará mais porque o tempo passa uma esponja grossa sobre tantos detalhes, porque tu, minha memória, te tornas selectiva e, sobretudo, porque não é possível voltar.

Amanhã, estarão neste mesmo espaço outros rostos. As gotas continuarão a escorrer da torneira do lava-louças da cozinha e os rios que se formarão serão de outras margens, de outras paisagens, de outros risos.

Nunca mais poderei voltar!

A maçaneta da porta de saída é assimétrica. Só agora reparei. Voltar atrás agora, seria um nunca acabar de detalhes e de circunstancias porque tudo o que se vive, mesmo que seja num mesmo lugar, é diferente em cada momento. Os olhos arredondam-se a cada minuto à passagem do mundo e dão-nos perspectivas que nunca anteriormente imaginámos.

Rodo a maçaneta da porta e as gostas de água saltam do lava-louças para os meus olhos. As despedidas são sempre aquosas, sempre rios, sempre mares. Não há despedidas sem água, mesmo quando cerramos os dentes e dizemos que amanhã se vai continuar.

Amanhã não será mais aqui. O espaço que me habitou, dispo-o eu agora. Desembaraço a alma desse abraço quente e seguro da minha casa e parto.

Quem chegar, irá certamente demorar os olhos nos azulejos pálidos da cozinha. Poderá nem sequer reparar nas gotas que escorrem demoradas da torneira do lava-louças e, dirigir de repente o olhar para a janela, onde seguramente, não estarão garotos a passar. Ficaram lá, muito atrás, os garotos, na curva apertada de outro tempo.

Quem chegar agora, construirá aqui, neste meu ainda e para sempre lugar, as suas próprias memórias.

Fecho porta devagar. Não quero partir com estrondo, apenas e só com a água que me escorre.

 


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