XXII. O sono.
Minha memória,
Recebeste a minha última carta, do tempo que te perdi e respondeste-me.
Afinal, dizes-me a rir, pode não ter sido absolutamente assim. Posso não te ter perdido por completo e, além disso, eu dormi…
Dormir, explicas-me, implica deitar a cabeça no teu colo minha memória e deixar-me estar.
Ris-te tanto, eu sei, sempre que eu deito a cabeça no teu colo, provavelmente na antecipação do carrossel de emoções que me trazes através da lembrança dos sonhos.
Efectivamente, não é tudo coerente, nem absoluto, nem coordenado, nem sequer racional nos sonhos. Apesar disso, estás lá. Ou, por causa disso, estás lá. Eu sei disso porque me lembro.
Há sonhos recorrentes e sonhos que jamais se esquecem. Ou porque foram importantes enquanto acontecimentos de alma, acontecimentos do fundo do subconsciente, acontecimentos que têm o poder de mudar a imagem que muitas vezes temos de nós ou dos outros. Ou, simplesmente, porque a cor a respiração, a densidade do que que se passa se torna tão real aos nossos olhos. E, nos permite por instantes voar.
Dizem que o sonho limpa e deixa que a respiração comande por um tempo a razão. O absurdo é muitas vezes convidado de honra. Nos sonhos, nada se passa como deveria ser. Apenas se passa.
Estás lá minha memória, porque me recordo. São acontecimentos improváveis, nuances que não reconheço, personagens fantásticas e locais que nunca visitei. Apesar disso, e ris-te tanto minha memória, consegues trazer-me tudo isso.
Acordo assim totalmente improvável. Vestido mesmo de uma completa improbabilidade, numa dimensão onde nem sequer me reconheço. E tu, tu riste tanto minha memória. Sabes que esse jogo de acontecimentos estranhos é importante para estruturar o meu quotidiano, para me ajudar a reorganizar e, sobretudo para que eu me possa reconhecer.
Ontem havia um jovem, tão jovem… Apesar dos meus oitenta e cinco anos celebrados algures num passado muito próximo e ainda assim, esquecido. Percorri nos passos do jovem, célere, as páginas de acontecimentos que nunca desfolhei e, na curva do local exacto em que o sono se encosta à realidade que emerge devagar percebi…Não era ele senão eu numa projecção de mim, naquilo que me arquitectara ser.
O espaço que percorrera nesses passos alheios, tinha uma finalidade: fazer-me entender. E fazer-me entender o mais profundo de mim. Passos que nunca me pertenceram aparentemente e afinal me explicam naquilo que sou de mais profundo. A vida, minha memória, tem que passar pela realidade e pelo sonho. Pelo que se fez efectivamente e pelo desejo que impulsiona. Sem isso, dificilmente se construirá. Dificilmente se viverá.
Aos oitenta anos e nos passos de um jovem que voa, tenho vontade de abrir a janela de uma qualquer realidade e dançar. O tempo, fará as vezes de uma bela presença que me afaga. O espaço, tornar-se-á assim o lugar absoluto da realização de todos os desejos.
Vou cair no teu colo minha memória sorridente, sempre que me precisar encontrar, sempre que me precisar reinventar. E tu, tu ri-te o mais que puderes minha memória e não te esqueças… Lembra-me!
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