XXIII. O medo.
Minha memória,
Não sei de onde vem este medo que me trazes e que me invade para além de tudo.
Lembro-me que antes não era assim. Muito antes, possivelmente, não era assim.
O medo que agora recordo, quase permanentemente, faz desaparecer a dimensão do tempo…Havia um colorido e uma paz que nem se imagina. Ficaram lá muito atrás, algures, recolhidos em memórias já desbotadas de antes da última semana. Depois disso, foi o vazio, a ausência e este medo imenso que recordo em cada minuto de um longo dia.
Parece que tudo o que se vive e se lembra agora, vestido de medo, não tem cor. O cheiro é opaco e não há nada de cítrico. Antes permanece um éter que envolve tudo. Apesar disso, o céu está mais límpido, as flores crescem com viço e a natureza celebra sozinha uma Primavera que chega a tempo.
Como se o medo nos impedisse de celebrar com ela.
Como se o medo fosse essa barreira invisível que nos mantém longe dela, alheios ao canto dos pássaros que se houve nítido da minha janela.
Todos os acontecimentos que agora me trazes, de um momento para o outro minha memória, vem envoltos nesta capa de medo e vazio.
Não sabia que o medo apaga o tempo, veste inteiro o quotidiano em cada gesto estudado, em cada silêncio, em cada pensamento. Nem podia saber. Lá longe, há uma semana atrás, as preocupações eram outras e corria-se. Corria-se muito. Corria-se demasiado. Às vezes nem se sabia muito bem para onde se corria.
Hoje, recorda-se e vive-se e, recorda-se outra vez mas em pousio. Como se ficar, seja absolutamente necessário.
Não sei porque me esqueci de repente de tanta coisa e a os únicos episódios que me recordas, muito iguais, muito opacos estão todos vestidos de medo.
Dizem-me que é assim, que é preciso olhar de perto todo este medo para depois crescer. E fazê-lo em uníssono com outros medos maiores e iguais. Muitos medos juntos em muitas recordações que teimam em se repetir até à exaustão.
Lá fora, os pássaros partem ao encontro do céu límpido e voltam a lembrar-se do silêncio, do canto da água a correr sozinha, das macieiras que cantam baixinho.
É preciso agora que fique. É preciso agora que fiquemos, que abracemos forte este medo que veste tudo e o compreendamos.
O medo é afinal um estado de alerta necessário. Ficar com ele e recorda-lo em cada minuto é participar do movimento evolutivo de cada um e da própria humanidade.
Vamos então ficar com medo. E depois, pedir-te-ei minha memória que me ensines outra vez a voar.
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