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Sábado, Novembro 2, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XXIV. Esquece esta realidade.

Minha memória,

Não quero que me lembres de nada que aconteça agora.

O que acontece agora não faz parte deste mundo. Não como o concebo, como o construo, como o reconheço.

Não há nada que me tenha preparado para esta realidade e muito menos, para a lembrança que me possas tu trazer desta realidade.

Um dia acordo à espreita. No outro, revejo-me assustada, acocorada, à espera.

Não há nenhuma urgência, nenhum subterfúgio, só um único acontecimento que empapa tudo e nos envolve.

O real tornou-se obsessivo e fundamental, apesar de ninguém, nem mesmo tu minha memória quando te deres completamente conta disso, aí querer viver.

Espero que me tragas, por agora, tudo o que nunca aconteceu mas eu recordo como tal. Ou então, tudo o que se passou há tanto tempo que só o facto de mo lembrares me faz sorrir.

Eu sei que essas lembranças recuadas apresentam-se quase sempre desbotadas, com inicio pouco definido e sem nenhum fim de que me possa orgulhar agora, nesta fase totalmente absurda, creio, da minha vida. Ainda assim minha memória é preferível.

O passado tem alguma harmonia. As cores vibrantes dos Verões da minha vida trazem-me consigo rostos, sorrisos e a esperança. Sobretudo isso minha memória: muita esperança.

Ontem, mais uma vez assustada, acocorada à espera, percebi que não tinha nenhuma esperança. À espreita, de qualquer um dos ângulos para onde olhasse, estava o mesmíssimo acontecimento e, a esperança sempre totalmente ausente.

O tempo que se passa neste momento afugentou a esperança. Remeteu-a para uma qualquer fotografia de Verão, foi isso.

Vivemos um tempo sem esperança. Um tempo em que tudo circula à volta de um mesmo desproposito. Como se o futuro que tanto nos preenche deixasse de ter sentido…

Os minutos somam-se na mesma dinâmica de sempre mas, para nós que os tentamos viver, tornam-se imensos e opressivos.

Minutos em nuances de preto e pardo somam-se para construir uma vida em sépia que chega e se agarra aos cabelos, ao sofá da sala, trepa pelas mãos e acomoda-se.

Não quero mesmo minha memória que me lembres de nada deste tempo acomodado.

Deixa apenas passar este acontecimento e o manto que nos envolve.

Dos sonhos, tiraremos quem sabe uma resposta plausível porque amanhã, amanhã o dia nascerá e eu, assustada, acocorada, à espreita. Eu, na certeza de saber que não me quero absolutamente, lembrar.

Esquece tudo isto minha memória, esquece.

 


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