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Sábado, Abril 19, 2025

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XXIX. A Ausência.

Minha memória,

Sabes que eu recordo. Recordo com muito gosto tudo o que me envias e recordo cada uma das lembranças, por vezes, como se de acontecimento presente se tratasse.

Não sei, aliás, e na maioria das vezes, onde está a minha verdadeira vida, se nos passos do meu caminho diário com cada uma das suas tarefas que me enchem as horas, se na recapitulação aturada e agradável de tudo o que se passou. E, que volta de alguma forma a acontecer sempre que é recordado.

Reviver, pode ser afinal uma forma de viver tão ou mais completa do que a presencial. A única diferença está no factor tempo e no factor espaço. É que numa, a que se recorda, há dois espaços e dois tempos que se interpenetram e se completam. Na outra, a que se vive agora, neste preciso momento e pela primeira vez, o espaço e o tempo são únicos.

E é sobre esta memória recente, do que se viveu no espaço e no tempo de ontem, de anteontem, que te quero agora falar.

De repente, o que me trazes para recordar vem impregnado de ausência, minha memória.

Uma ausência forte e com cheiro acre. Uma ausência descolorida e baça como são todas as ausências e, isso marca absolutamente cada uma das minhas recordações.

Seja um pôr-do-sol, um momento de refeição, um passeio ao entardecer, seja uma gargalhada, um pensamentos, uma fotografia… Lá está: a ausência

Não há, efectivamente, ninguém para partilhar uma única lembrança.

Ninguém na refeição que recordo. Apenas um prato de comida que se agiganta.

Ninguém ao por desse sol que aparece único, a encobrir todo o resto do dia que se passou.

Ninguém num passeio ao entardecer. Apenas as cores, as folhas balouçantes das árvores, as plantas.

As únicas gargalhadas de que me lembro são as minhas. O pensamento é o meu, a fotografia é sempre tirada por mim, em termos de auto retrato ou a enquadrar a natureza e essa ausência.

Tomar conhecimento de que a ausência de repente se sentou na minha vida, nas nossas vidas é perceber que de alguma forma uma grande parte dessa mesma vida foi embotada.

Recordar de nós é bom, mas não chega. A presença do outro completa-nos, afaga-nos, faz com que nos reconheçamos em comparação e em partilha, em sintonia e em conflito. Coisas que são na sua essência motores que nos fazem progredir.

Ninguém vive sozinho porque a viver sozinho pouco se constrói.

Ninguém se lembra sozinho porque são os passos dos outros que nos completam, nos alegram, nos entristecem e nos preenchem.

O conflito com o outro, a diferença insanável é parte integrante da nossa humanidade que se quer única. Da mesma forma que o são todas as tentativas de concórdia e de harmonia.

Ao perceber o outro, entendemo-nos a nós mesmos naquilo que, de outra forma, possivelmente nem nos aperceberíamos.

Somos, afinal, com o outro e contra o outro. É por isso que esta ausência que sentimos nos passos que damos agora e nas recordações nos angustia imensamente, nos tolhe e nos empurra para um qualquer lugar onde seremos certamente muito menos humanos.

 


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