XXX. Daquilo que nunca recordo.
Minha memória,
Porque não me trazes tu, esse preciso instante?
Eu sei que ele existiu mas não o recordo… Não sei as cores de que se revestiu, não consigo reviver as gargalhadas, o tempo escoa-se por entre o absurdo daquilo que nunca me trazes.
Foi num tempo qualquer, num momento qualquer. E, hoje, olho os olhos de alguém que me pergunta?
– Então lembras-te de mim? E daquele dia? Foi um dia especial não foi?
Custa-me confrontar o presente com esta ausência. Não sei quem és, não sei de que passado me falas. Os teus olhos trazem-me apenas a angústia de saber que os vi, num lugar qualquer que agora não reconheço…
– Então, ainda sabes o meu nome, não?
Não sei o nome nem reconheço o riso. Os anos passaram por cima de tudo o que nem tu, minha memória me consegues trazer. Não sei exactamente porquê. Minha memória, apenas não me consegue trazer…
– Sabes, passaram-se muitos anos, é normal. Afinal foi há tanto tempo…
E o azul imenso dos olhos a tornar-se aquoso com os silêncios, com as recordações que a mim não me chegam.
– Sou o Jorge! O Jorge!
Podias ser o Tomás, o António, o Rui. És o Jorge. E fecho os olhos com força para não vislumbrar nada.
– Ando sempre com o teu telefone e nunca arranjo tempo para te ligar…
E tu minha memória que te esqueces de mim, do Jorge, dos instantes que aparentemente passámos juntos e foram tão bons. Tu minha memória que me brinda agora, apenas com este absurdo e azulado olhar imerso numa opacidade de névoa.
– Pronto, deixa lá isso. Já vi que não sabes quem eu sou. Mas da minha irmã Mariana lembras-te não é?
Parece que troças de mim minha memória. Afinal há mais gente. A Mariana que eu também não recordo e que nunca reconhecerei… Ao invés disso fazes-me rodopiar o olhar com a lembrança da Teresa, tão jovem. Da Maria Francisca nesse dia de sol intenso, da Eduarda ao colo de meu pai, minúscula… Nenhuma Mariana. Absolutamente nenhuma Mariana.
– Fica para a próxima. Olha, deixo-te os meus contactos. Liga-me, sim?! Para podermos reviver esses tempos, para podermos voltar lá, a essa época. Hoje, com esta idade vivo muito de recordações…
E eu, nem disso. E eu, nem disso que não me trazes nada mais do que esta vergonha e esta angústia minha memória. Se eu pudesse, voltaria a viver esse tempo com cautela e com a vontade firme de depois recordar. Se calhar o problema foi esse, tê-lo vivido despreocupadamente. Afinal estavam lá o Jorge e a Mariana, o sol ou a chuva ou o vento ou o mar…
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