IV . Parecia tudo tão simples
Minha memória,
Foi bom esse tempo que me mandaste. Era tudo tão simples. Tudo quase completamente previsível. Uma palavra era uma palavra e um silêncio era um silêncio.
Convivia-se de certezas. Ninguém mentia. Quem por fraqueza enorme mentisse, perdia em honra. E a honra, era sempre muito importante.
As coisas tinham um valor correcto e as acções um peso justo.
Nesse tempo, bom que me mandaste, as crianças tinham um lugar e aprendiam muitos outros. Os lugares ocupavam-se por mérito e iam-se conquistando devagarinho. Ninguém ocupava o lugar do outro e ninguém se travessava à frente do outro. Simplesmente, crescia-se e ocupava-se um outro lugar mais à frente. Era preciso esforço e empenho para se crescer. Muito esforço e muito empenho. E ajudas, ajudas de todos os que se congratulavam com os crescimentos e, de todos os que participavam nos crescimentos.
O mestre podia ser o pai, o professor, o colega de trabalho e era sempre um amigo.
Nesse tempo, tão bom que me mandaste, havia vários mestres e vários amigos. Ganhava-se tempo a aprender e ganhava-se tempo a ensinar. Efectivamente, o tempo da sabedoria nunca se perdia e só se ganhava.
Nesse tempo bom, que agora me mandaste havia também um tempo que agora já quase não se vê, chamava-se vagar.
Era no vagar que se lia, no vagar que se estudava, no vagar que se construía tanta coisa. O vagar habitava as casas, os finais de tarde, os fins-de-semana e contrabalançava os tempos de pressa.
Não havia pressa sem vagar.
Hoje é diferente… o vagar desapareceu. Restou uma pressa que corre desenfreada e destrói muita coisa nessa corrida. Uma pressa que não nos deixa demorar em quase nada. Uma pressa inimiga da sabedoria, do conhecimentos, da perfeição.
Por isso, minha memória te escrevo. E por isso minha memória eu sei que sem ti não é possível sequer saborear os instantes que me restam da forma devida.
És tu a única, que agora tens honra, verdade, conhecimento e vagar. E histórias que nos fazem recordar como nos parecia ser tudo tão simples e tão previsível. Uma palavra era uma palavra e um silêncio era um silêncio. Pelas palavras percebia-se quase tudo. E, pelos silêncios, pelos silêncios adivinhava-se. E era muito importante adivinhar. Quando se adivinha, está-se muito mais perto do conhecimento.
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