XXXIII. A culpa.
Minha memória,
Peço-te desculpa. Foi culpa minha, absolutamente minha não ter vivido esse dia.
E o instante que me passou despercebido e o sol pleno que eu ignorei…
Havia gente e um sorriso brilhante por entre a tempestade. Lembro-me vagamente, muito vagamente.
É culpa minha, minha memória, o facto de hoje eu não conseguir recordar. Não tive força para lhe falar. Os cabelos dela, os olhos dela e o fundo do meu silêncio, tão negro. Hoje poderia lembra-me…
Fugiram-me os olhos dela e o cabelo, num torvelinho de ausência. Só me lembro da ausência, do lugar desocupado, tanto tempo desocupado. A vida toda, desocupado. Olho em volta e lembro-me de uma cadeira vazia, de uma frase nunca dita, do meu riso que se foi juntamente com o torvelinho da ausência e o cabelo dela.
O tempo que eu nunca vivi não me podes tu trazer minha memória. É uma ausência de cheiro, de partilha, de improviso, de danças nunca dançadas, de noites em branco na única lembrança que ainda me invade: o desse torvelinho que se vai devagar pelo tempo fora. As imagens a escorrerem-me dos sonhos e a embaciarem-se como se a vida se esfumasse para dentro de uma garrafa velha.
Foi há tanto tempo minha memoria e, por minha única culpa, que nada do que podia ter acontecido realmente se passou. Sabes, calei no fundo da alma e quase me esqueci que calei. Hoje recordo que foi assim. Tenho apenas um lugar, um lugar desocupado e mais nada…
Aquilo que não vivemos permanece, como ausência e como culpa, apenas. Aquilo que não vivemos é um peso que se agiganta pela vida fora.
Tenho tanta pena minha memória. E, bastava-me nessa altura ter estendido a mão para apanhar o cabelo que ameaçava partir assim, tão de repente. E agarrar os olhos dela e guarda-los no seu lugar. Havia um lugar à espera dos olhos dela, eu sei.
De tudo, ficou a ausência apenas e toda a minha covardia que agora me agasalha desmesuradamente.
O tempo não apaga nada minha memória. Sobretudo não apaga aquilo que por culpa nossa nunca se viveu.
E sabes, minha memória, o sol que nos passou despercebido é hoje uma estrela brilhante. Cada vez maior e cada vez mais brilhante. Não o mesmo sol, efectivamente, que esse esfumou-se com o tempo e seguiu o caminho do esquecimento, mas um outro que eu construo com a minha imaginação e coloco no seu lugar, a brilhar.
É absolutamente indiferente agora a cor original do cabelo dela. Apenas sei que hoje, esse cabelo é lilás. Tão lilás quanto as flores de jacarandá que galopam pela calçada. E é laranja o sorriso que se foi, da cor de um sumo doce que se bebe de manhã.
Amanhã, estarei atento minha memória e prometo viver cada gota de orvalho, cada rio que me desagúe nos olhos, cada espanto e cada sobressalto. Prometo viver cada sopro, cada mão estendida, cada reparo, cada urgência e perceber todos e cada um dos sorrisos que me habitem.
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