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Sábado, Novembro 23, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XLI. Ressuscitar.

Minha memória,

Ressuscitei hoje. Outra vez eu ressuscitei de todas as minhas mortes que não são senão as lembranças que me afundam os passos. Ressuscitei de todos as histórias, por todos os caminhos que entrelacei no meu destino e não me levaram a parte nenhuma, de todas as pessoas que se cruzaram comigo por engano e partiram da mesma forma que chegaram, não sem antes me desbotarem de lágrimas. Ressuscitei, minha memória, dos sonhos que julgava perdidos e se acotovelam agora na linha de partida do meu futuro que começa hoje mesmo tal como começou ontem e, vai ser assim até que eu não tenha nem mais um instante para viver.

Ressuscitei minha memória, e percebi que só ressuscitando a vida se leva por diante.

Para isso contei com a tua ajuda e com todas as recordações que me trazes. Através delas, percebo que não devo insistir num caminho errado, que não devo segurar quem quer partir, que não devo em hipóteses alguma, voltar lá atrás a tantos passados que foram importantes no seu devido tempo mas que agora, pouco ou nada têm a acrescentar à minha vida.

É preciso abstrairmo-nos de tanta coisa, libertarmo-nos de tanta coisa para conseguir ressuscitar.

A vida é uma cruz que se carrega para diante, sempre para diante e dela extraímos todos os ensinamentos e toda a felicidade, também.

Quem me ouvir hoje, tão sereno face ao tanto que insistes em me lembrar, perceberá que ressuscitei.

Atravessei já o calvário da incerteza, passei por lagos de espanto onde a água permanece ensimesmada, como se escorregar para algum lugar não lhe fosse a coisa mais simples e natural de fazer. Estive em desertos cheios de pedras e de medo, sem esquinas, sem paredes, sem sítios seguros. Só céu, luar e vastidão para me perder…

Apesar de tudo, eis-me aqui ressuscitado. Hoje minha memória, a minha existência faz-se de Páscoa semi eterna, amena e gulosa à procura de felicidade. De toda a felicidade que eu for capaz.

Ninguém ressuscita par ser infeliz. Ressuscitar para se afogar em mágoas, em água destemperada, não é ressuscitar é a morte lenta e pastosa das existências que quase não têm caminho e quase não têm lugar.

Hoje minha memória eu ressuscitei porque acredito que o tempo virá a cavalo nos pensamentos e nos projectos. E acredito que tu, minha memória, ressuscitaste também comigo. Tudo quilo que me envias será escamotado agora por um homem novo. A luz que ilumina a candeia do meu pensamento e da minha lembrança é uma luz nova. E amanhã, amanhã faremos juntos, tu e eu, Páscoa outra vez.

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