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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XLV. Deus.

Minha memória,

Não me falas Dele, não me lembras sequer de que Ele existe. O tempo da minha vida passa-se agora escorado por um muro e, virado de frente a uma ladeira vertiginosa. Não faço ideia quanto tempo demorarei a descer, nem se o muro me acompanhará por todo o percurso. Também não sei se haverá inversão e se com algum esforço poderei, quem sabe, voltar alguma vez a subir.

Dizem-me que a vida se escoa devagar, muito devagar e que os passos que damos agora não são os mesmos que demos anteriormente. Nem sequer parecidos. Se calhar são passos mais cautelosos, passos mais curtos com medo de que o horizonte nos fuja…

Escrevo-te porque nunca Mo trazes. Esperei todo o advento e também no Natal. Esperei inclusive em ressurreições diversas e nada. Nem uma imagem me trouxeste Dele.

Possivelmente Deus não existe para ti minha memória. Ou porque eu de facto nunca o encontrei ou, porque se por acaso nos cruzamos ou não reparei ou o perdi.

Quero pensar que o perdi. Talvez seja essa uma forma de o poder um dia recuperar, mesmo sem saber exactamente nem onde nem como o procurar.

Arrumei só hoje o presépio. É um presépio de figuras sem rosto onde só vive o lugar, à espera. Pensei que este tempo depois das festas fosse talvez uma porta aberta, mesmo que com algum atraso. O nascimento, a dar-se, seria certamente muito festejado.

Ninguém nasceu porém e, creio que agora também não nascerá. O tempo de começar alguma coisa foi-se, com esta minha urgência de continuar a caminhar paralelamente a este muro branco e calado, pela ladeira abaixo.

Lembrei-me de ti minha memória por seres a minha única esperança de um qualquer Natal. Sei que a memória nem sempre nos chega fidedigna, muitas vezes ela aparece como alguma coisa construída. Uma espécie de anseio revestido de pintura de realidade. Não da própria realidade, mas somente da sua pintura. Não me importo minha memória, se tiver que ser assim. Não me importo nada que Ele me apareça apenas pela vontade de o ter, de o recuperar, de lhe adivinhar os traços, de lhe vislumbrar o sorriso.

Sei apenas isso, mesmo não me lembrando de alguma vez nos termos cruzado: Deus, a existir terá um belo sorriso. Não pode ser de outra forma, mesmo tendo em consideração os milhares de muros e de ladeiras e todos os que descemos por elas…

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