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Sábado, Novembro 2, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

VII. Há agora tanta coisa de que não me lembro…

Minha memória,

Não me tragas só passado, traz-me também o ontem e o minuto anterior ao que se acabou ainda agora. As recordações que me envias aparentam não ter tempo, às vezes. Por minutos consigo lembrar-me da mesma forma do que aconteceu ontem e do que se passou há mais de meio século. Por vezes, acontece mesmo o absurdo de que me fazeres chegar com tanta pressa tudo aquilo que se passou há muito tempo e te esqueceres de me recordar o que aconteceu à escassos minutos… E as consequências, por vezes, são desastrosas.

Há escassos minutos decidi colocar o copo num lugar de que agora não me recordas.

Há escassos minutos empacotei um livro para alguém de que não me dizes sequer o nome.

Há um segundo, apenas, senti uma imensa angústia e não me dizes sequer porquê.

Preciso de pensar que é possível que me ajudes melhor neste meu quotidiano com as tuas lembranças. Eu sei que nem sempre estás disponível e que já percebeste porventura que estou a envelhecer. Talvez seja isso, aos velhos não se lhes envia tudo. Envia-se-lhes apenas o que os faz sorrir, os que os faz viajar no tempo os que os faz reviver…

Mas sabes, há tanto que ainda quero fazer e dizer e construir e não sei onde coloquei o maldito do telefone…

Acho que por estar envelhecer, tu pensas que o meu futuro já esta curto…Uma história longa e um futuro tão curto. Foi por isso que decidiste não me ajudar a lembrar-me das coisas que me condicionam tanto neste tempo presente.

Sei perfeitamente que te deleitas com os meus caracóis louros. Tinha cinco anos e andava de baloiço com os meus caracóis louros soltos ao vento. A minha mãe vestira-me uma saia escarlate e era depois do almoço. Fazes questão de me lembrar o que eu comera nesse dia: ervilhas tenras da horta da minha avó acabadas de colher e ainda com o cheiro do tempo morno dessa Primavera. Baloicei com força para trás e para a frente toda a tarde. Um balanço vigoroso e compassado, os cabelos ao vento, a saia escarlate e a firme intenção de continuar a baloiçar assim sempre que o tempo o permitisse. Lembro-me de tudo isso como se fosse agora. Como se o baloiço estivesse pendurado aqui ao lado da minha cadeira velha e ao alcance do meu braço já com pouca força para balouçar.

Lembro-me como se fosse agora… E no entanto, não sei onde pus os óculos, o telefone o copo de água e tampouco sei o nome da pessoa a quem devo endereçar o livro que acabei de empacotar. Que livro empacotado? Que livro empacotado? E ainda agora o empacotei…

Não me deixes assim sem resposta, sem memória e sem mais por onde ir. Preciso absolutamente de continuar a minha história. Não me deixes assim, sem caminho, sem futuro, minha memória.

 


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