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Terça-feira, Julho 16, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

IX. Nem tudo o que recordo se passou exactamente como me dizes.

Minha memória,

Hoje, minha memória, percebi que nem tudo o que recordo se passou exactamente assim, como me dizes. Nem tudo o que revivo com tanta felicidade, por vezes, se passou dessa maneira. Quem sabe, se algum dos acontecimentos que me mandas nem sequer é real, nem sequer é meu…

Recordaste-me de uma casa velha e de uma mansarda num Verão, algures nos meus 15 anos. O rapaz que me dava a mão chamava-se Afonso e tinha olhos desmedidos e sorriso fácil. O mesmo Afonso que permanece, desde que eu me lembro, ao meu lado e sei com toda a certeza que nunca conheci na idade de 15 anos. Apesar disso, estava lá na casa velha, debruçado na mansarda a olhar alguma coisa ou alguém em baixo… Porque certamente é importante para mim neste momento que assim fosse.

Recordo pois, o meu Afonso, nesta presença que me completa e me preenche, mesmo nos instantes em que era impossível que isso tivesse acontecido.

Lembras-te do meu passo de criança ainda pouco firme? Quase podia jurar que corria já nessa altura e que o vento me acompanhava as correrias e as gargalhadas.

Não sei se é para me fazeres feliz que me mandas recordações inexactas, tempos que se misturam, acontecimentos que se passaram algures mas não na minha realidade.

De repente, sento-me e abro o envelope dos acontecimentos que me envias, minha memória e, é como se estivesse sentada num cinema. As cores fluem à minha volta, os episódios entrelaçam-se e tudo me parece tão possível.

Ontem, percebi a meio de uma recordação que nunca poderia ter sido Xerazade e que as mil e uma noites nunca me chegaram a acontecer. O livro, acabado de reler, jazia entre os meus joelhos e Afonso ao meu lado, com os seus quinze anos que nunca reconheci, ria-se.

Nem tudo o que revivemos nos pertence exactamente. Ou porque não foi bem assim que se passou, ou porque o sonho e a realidade também se misturam nas nossas recordações. Construímos memórias e tornamo-las reais. A partir de vivências, de convivências, dos outros e de nós próprios e no fundo, de cada vez que o fazemos tornamos-mos mais fortes e mais capazes de ultrapassar as necessidades do dia-a-dia, essas sim, absolutamente reais.

Quase juraria que o Afonso continua agora com quinze anos e a mansarda da casa velha permanece um palco de tantos acontecimentos mesmo que as longas escadas me pareçam agora, realmente, totalmente impossíveis de subir.

 


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